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SAÚDE
De toxina a remédio
Mais conhecido por seus efeitos estéticos, botox também é usado com fins terapêuticos;
saiba o que trazem as novas pesquisas com o medicamento
Letícia Moreira/Folha Imagem
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FLÁVIA MANTOVANI
EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO
RACHEL BOTELHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Não tem jeito: quem
ouve falar em botox
hoje logo pensa em
seu efeito estético. E
são mesmo os dermatologistas
que o aplicam com esse fim os
responsáveis por metade das
vendas do medicamento injetável que se tornou mania entre
mulheres e homens inconformados com o acúmulo de rugas
-e, mais recentemente, até entre aqueles que nem têm idade
para ter tantas rugas assim.
O que muita gente não sabe é
que a toxina botulínica tipo A
-conhecida como botox por
causa do nome dado ao produto
da empresa Allergan, mas presente no Brasil também com os
nomes de Dysport e Prosigne-
tem sido uma opção para o tratamento de doenças variadas.
O remédio foi aprovado pela
primeira vez há 20 anos, nos
EUA, com fins terapêuticos
-para tratar estrabismo. Desde então, já tem autorização no
Brasil para ser usado em problemas como contrações involuntárias dos músculos, sequelas de AVC, bexiga hiperativa e
hiperidrose (suor excessivo).
Fora as indicações já aprovadas para uso clínico, cientistas
do Brasil e do exterior testam a
toxina que se transformou em
remédio para aliviar inúmeras
outras doenças. Uma busca pelo medicamento em sites que
reúnem pesquisas publicadas
em revistas médicas retorna incontáveis resultados.
Seu poder de relaxar os músculos parece trazer benefícios a
condições tão diversas quanto
aumento da próstata, tabagismo e dores crônicas. Estudos
mais iniciais vêm apostando no
seu uso até para emagrecer.
Além da capacidade relaxante, obtida pela diminuição da liberação do neurotransmissor
responsável pelas contrações
musculares, a acetilcolina, a toxina parece agir também em
neurotransmissores envolvidos, por exemplo, na mediação da dor. Estudos com pacientes
com uma espécie de torcicolo
persistente mostraram que, em
alguns casos, a toxina não melhorava a torção da cabeça, mas
agia especificamente na dor.
Hoje, a área de dores crônicas é um dos principais alvos de
pesquisa com a toxina. Há trabalhos, em diferentes estágios,
voltados para dores lombares,
dores nos ombros, fibromialgia
e dores de cabeça, por exemplo.
O neurologista Mauro Gomes, coordenador de um centro de referência em toxina botulínica que funciona no Hospital Guilherme Álvaro, em
Santos, está desenvolvendo, em
conjunto com outras universidades, um estudo para avaliar o
resultado da toxina em dores
no ombro sofridas por pessoas
que tiveram derrame.
Uma pesquisa anterior com
menos pacientes e sem grupo
controle já havia tido resultados "espantosos", de acordo
com o neurologista.
Ele também começou recentemente um trabalho que avaliará o efeito do tratamento para melhorar a cicatrização de
cirurgias plásticas. "A eficácia
não é uma unanimidade entre
os pesquisadores, mas é promissora", diz.
Gomes conta que, num recente encontro internacional
sobre a toxina, cientistas relataram que injetaram o remédio
ao redor de tumores de pulmão
para melhorar a eficácia da quimioterapia. "Os vasos se dilatam ao redor do tumor e ele recebe maior volume de quimioterápicos", afirma.
Para ele, o futuro promete
uma diversificação grande do
botox como terapia. "Dependendo do caso, ele pode trazer
uma boa qualidade de vida para
o paciente. É um procedimento
ambulatorial. Você pode injetar teoricamente onde quiser e
ele atua especificamente naquele grupo muscular. Por isso,
os efeitos colaterais sistêmicos
são raríssimos."
Gomes divide a neurologia
nas eras pré e pós-toxina. "Antes, para distúrbios do movimento, por exemplo, só havia
tratamentos com eficácia parcial e efeitos colaterais fortes."
Ele observa, no entanto, que
é preciso saber usá-la adequadamente. "Trata-se da toxina
mais potente na natureza, a
mais mortal. Claro que ela é
manipulada com fins terapêuticos em doses mínimas, mas
seu uso tem que ser exclusivo
de médicos com treinamento
na área", defende.
O neurologista lembra ainda
que o medicamento precisa ser
reaplicado, em média, de três a
seis meses após o uso. Mas ele
diz que, depois de passado o
efeito, há pacientes que mantêm alguns benefícios. "O problema, em alguns casos, não
volta como era antes. Vários estudos tentam desvendar se a
toxina pode influenciar o sistema nervoso central, mesmo
sendo aplicado em áreas periféricas do corpo."
Enxaqueca
Os efeitos estéticos do botox
foram descobertos de forma
acidental, quando um casal de
médicos canadenses notou que
pacientes que o recebiam para
espasmos na face tinham melhora também nas rugas. No caso da aplicação para cefaleia,
ocorreu algo parecido. Dessa
vez, foram pessoas que aplicavam a toxina com fins estéticos
que descobriram que ela gerava
uma melhora também nas crises de dor de cabeça.
No último congresso internacional de cefaleia, realizado
nos EUA em setembro, foi
apresentado um estudo feito
em 66 centros com 705 adultos
com enxaqueca crônica que encontrou melhora significativa
em diversos parâmetros naqueles que receberam o botox.
"A toxina não deve tomar o
lugar dos medicamentos existentes, mas pode ter seu papel
em algumas cefaleias. Ela parece ser positiva para pessoas
com cefaleias crônicas de frequência muito alta, com crises
por mais de 15 dias no mês. Não
se trata de uma panaceia, mas
provavelmente terá seu lugar",
avalia Maurice Vincent, chefe
do setor de cefaleias do Serviço
de Neurologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que estudou o efeito da
toxina para esses casos.
Pesquisadores da UFBA
(Universidade Federal da Bahia) também fizeram um estudo sobre o tema, comparando
uma droga padrão para enxaqueca com o botox, aplicado no
couro cabeludo. A melhora nos
dois grupos foi igual -de mais
de 80% de redução na dor.
Ailton Melo, neurologista e
professor da UFBA, comenta,
porém, que a toxina tem a vantagem de provocar menos efeitos colaterais. "O remédio comum causa aumento de peso,
sonolência, boca seca. Já no caso da toxina o único efeito é a
dor da picadinha na hora da
aplicação", compara.
O grupo de Melo também já
testou, com bons resultados, o
uso do botox em centenas de
indivíduos com sialorreia
-quando a saliva escorre da
boca porque o paciente não
consegue engoli-la. O problema
afeta pessoas com doenças de
Parkinson ou Alzheimer, paralisia cerebral, esclerose lateral
miotrófica ou vítimas de um
derrame, por exemplo.
"É extremamente desconfortável para o paciente e traz
muitos problemas sociais", diz Melo. A injeção é dada nas glândulas salivares e diminui a produção de saliva.
Ainda nas aplicações contra a
dor, a toxina tem sido testada
em cirurgias de hemorroida,
com o objetivo de trazer alívio
no pós-operatório.
O cirurgião José Alfredo dos
Reis Neto, responsável pelo estudo, já tratou cerca de dez pacientes. "O resultado inicial é
muito bom, mas o número de
pessoas é pequeno. Precisamos
ter no mínimo 50 pacientes para tirarmos uma conclusão."
De acordo com o médico, a
toxina tem um efeito na contração do músculo do ânus, diminuindo sua intensidade após a
cirurgia. A dose usada é pequena, suficiente para duas semanas. "Esse período de ação é
exatamente o que precisamos
para que o paciente não sinta
dor", afirma ele.
Urologia e dermatologia
No campo da urologia, estudos recentes vêm alcançando
bons resultados para o tratamento de pacientes com hiperplasia prostática (aumento benigno do órgão que pode causar
dificuldade para urinar) que
não respondem bem à medicação ou que apresentam efeitos
colaterais importantes.
"Após a injeção, aplicada na
próstata, há um alívio nos sintomas. Os pacientes passaram
a urinar com jato mais forte e
houve um esvaziamento correto da bexiga, sem necessitar um
esforço extra", afirma o pesquisador José Carlos Truzzi, urologista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Segundo ele, a ação da toxina
não se restringe, nesse caso, ao
relaxamento da musculatura.
Ela também induz a morte programada das células da próstata, o que provoca diminuição
do volume do órgão.
"Os resultados foram muito
favoráveis. Pode ser assumida
como prática clínica nos próximos anos para aqueles pacientes que tomam medicamento e
não têm boa resposta ou apresentam efeitos colaterais, uma
situação bastante frequente."
Ainda não se sabe o intervalo
ideal entre aplicações, mas o
urologista acredita que seja superior a um ano devido a esse
duplo efeito.
Em estágio mais inicial, outras pesquisas avaliam a aplicação da toxina contra a cistite
intersticial, uma inflamação da
bexiga de origem desconhecida
que provoca dor quando o órgão se enche.
Segundo Truzzi, os tratamentos existentes não são efetivos e a toxina pode se tornar
uma alternativa. "Por enquanto, os estudos são incipientes e
envolvem grupos pequenos de
pacientes", diz.
Na área de dermatologia, o
botox também vai além das
aplicações estéticas: já aprovado para quem tem suor excessivo nas mãos e nas axilas, ele está sendo testado para algumas
cicatrizes de acne. "O tratamento é para poucos casos. Só
dá certo quando a cicatriz melhora com o relaxamento da
musculatura da região. Tem
que ser muito bem indicado",
alerta Emerson Lima, membro
da diretoria da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Obesidade e fumo
Uma descoberta que teve o
dedo do acaso deve atrair as
atenções nos próximos anos. Depois de aplicar a toxina na
região da boca para diminuir a
presença de rugas, a dermatologista Érica Monteiro, colaboradora da Unifesp, começou a
ouvir reclamações inusitadas.
"As pessoas que eram fumantes
se queixavam de que não conseguiam mais fumar direito.
Foi um efeito colateral do tratamento", conta.
A dermatologista sugeriu a
toxina, então, aos pacientes que
gostariam de largar o vício, mas
encontravam dificuldade.
Das 12 pessoas que receberam a toxina, três pararam de
fumar e nove reduziram em
80% o número de cigarros.
"Elas têm dificuldade de fazer o
movimento para fumar, de falar algumas letras e de tomar líquidos de canudinho. A maioria fica com aspecto normal,
mas em alguns houve também
uma modificação do sorriso",
afirma a médica.
O estudo será publicado em
janeiro na "Revista Brasileira
de Medicina", o primeiro passo
para possibilitar pesquisas com
grupos maiores de fumantes.
Outro estudo brasileiro, em
estado muito inicial, vai testar o
botox para pessoas que querem
emagrecer. Nesse caso, a toxina
será injetada, por via endoscópica, no estômago.
"O postulado é retardar o esvaziamento do estômago. Como ele se esvazia com mais lentidão, a pessoa consegue ter saciedade se alimentando com
um volume menor de comida",
explica Aloísio Cardoso Júnior,
gastroenterologista do Hospital das Clínicas da UFMG (Universidade Federal de Minas
Gerais), onde está sendo desenvolvido o trabalho.
Uma pesquisa preliminar feita pelo grupo foi uma das primeiras do mundo a atestar que
o procedimento é seguro. "Mas
foram poucos pacientes, nem
sabemos qual é a dose ideal.
Nos estudos com animais, a toxina foi eficaz para o emagrecimento, mas não temos conclusões definitivas relativas ao
efeito no ser humano", diz.
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