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São Paulo, quinta-feira, 16 de janeiro de 2003
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outras idéias - dulce critelli

O dom de perdoar e de fazer milagres

O perdão é a única atitude que pode movimentar as histórias pessoais e coletivas, lançando-as para fora da mesmice. O perdão limpa o terreno para o novo

Em 1961, a pedido da revista "The New Yorker", a filósofa Hannah Arendt cobriu o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém. Encarregado do transporte de judeus para as câmaras de gás, Eichmann não só não admitia ter praticado nenhum crime, uma vez que apenas cumpria ordens, como também alegava não sentir culpa nenhuma, pois "arrependimento é para criancinhas". Arendt, diferentemente dos comentários correntes, notou que a questão que envolvia o acusado não era apenas ética.
Eichmann sofria uma espécie de privação de um dos traços mais característicos da condição humana: a capacidade de distinguir-se e distanciar-se de si mesmo, de fazer referências a si próprio. A essa possibilidade Arendt chama de "consciência", e Sócrates, de "dois em um".
Sendo dois em um, falamos com nós mesmos, pensamos, julgamo-nos. Podemos concordar ou não com nós mesmos. Sócrates alertava para o fato de que, sendo dois em um, nós estamos condenados a viver em nossa própria companhia. Portanto estar em acordo consigo mesmo é fundamental. Quem suportaria uma vida em companhia de alguém com quem não concordasse? Certamente estamos falando de concordâncias e discordâncias não lógicas, mas existenciais. Em especial, quando discordamos de nós por termos praticado algum ato que sintamos como desonroso para nós.
Honra é uma palavra que parece referir-se a algo grandioso apenas, mas vivemos em função dela em todos os instantes de nossas vidas, a cada momento em que estamos evitando "passar vergonha" (levar um tombo, passar por bobo, errar...). E, na vida diária, acumulamos uma série de vergonhas. Algumas nos afetam superficialmente, outras comprometem a pessoa que somos, nos desmerecem. São essas desonras mais essenciais que provocam o desacordo com nós mesmos, pois não nos aceitamos como os protagonistas do gesto cometido, da palavra dita, do papel desempenhado.
A tendência mais comum é guardarmos essa vergonha em nossos corações, ocultando-a de nós mesmos; desfiguramos nosso gesto, nossa responsabilidade. Arranjamos para ele outra versão, procuramos outros culpados que não nós mesmos ou simplesmente o esquecemos. Mas esse é um paliativo. Como fantasmas que irrompem no escuro, nosso desmerecimento ameaça se desencobrir-se no silêncio solitário do pensamento. Retornar à consciência. Por isso o silêncio e o pensamento podem ser tão angustiantes.
Para corações dominados pela vergonha, nada mais atraente do que se ater às suas intenções -sejam passadas, sejam futuras: o que pretendem, o que farão, o que queriam... Nenhum olhar é modesto o suficiente para reencontrar a história vivida, mas soberbo o bastante para reinventar-se maior do que é. Para corações envergonhados, a vida mais autêntica lhes escapa das mãos por um triz, a responsabilidade pessoal é dissipada, e promessas de conquistas e de mudanças, quase sempre irrealizáveis, são sua realidade.
Os homens dominados pela vergonha não são frágeis nem imorais. Só não são humildes o suficiente para perdoarem a si mesmos. Não acreditam no seu dom de agir, não oferecem a si mesmos um ponto de partida.
Como a própria Arendt nos lembra, o perdão é a única atitude que pode movimentar as histórias pessoais e coletivas, lançando-as para fora do círculo vicioso do já realizado, para fora da repetição e da mesmice. O perdão limpa o terreno para o novo.
Perdoar não é retirar de alguém a autoria do seu gesto, mas desobrigá-lo daquilo que fez. É não aprisioná-lo numa única possibilidade de ação e de decisão. É reconhecer sua liberdade de ser, de iniciar uma nova possibilidade para sua existência e de reiniciar-se a si mesmo. O perdão, portanto, reconhece num homem a sua condição humana, a sua mais peculiar dignidade, que é o dom de começar de novo, outra vez, o dom de iniciar algo novo apesar de todas as expectativas em contrário: fazer milagres.
Desse ponto de vista, o mais fundamental acordo de um homem consigo mesmo depende dessa compreensão de si e de não esquecer seu poder de fazer milagres.


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia-br.com

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