São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 2002
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outras idéias

betty milan

Quem está atento vive melhor

O homem negro era paranóico, porém o seu delírio me fez refletir sobre a condição humana. Sem perceber, eu me exercitei no que Salvador Dalí chamou de atividade paranóico-crítica

Por que será que eu presenciei a cena?
Alguma relação entre o fato de ter ido à exposição comemorativa dos cem anos de Victor Hugo e ter visto o manuscrito do "Os Miseráveis"? Um manuscrito que tem um palmo de altura e, também pelo seu tamanho, faz pensar na imensa população de miseráveis que existe na Terra.
A cena aconteceu no vagão do metrô onde havia só meia dúzia de pessoas por ser domingo de manhã. Entrei conversando com um amigo sobre a exposição e, para continuar a conversa tranquilamente, nós nos sentamos diante de um banco vazio. Pouco depois, um homem negro, com aparência de cinquentenário, ocupou o banco da frente, brandindo um livro encadernado que ele segurava na mão direita. Um louco ou um místico?
Fixando o meu amigo, ele pergunta:
-O que mais você quer de mim?
Estarrecido, aquele não responde, e este continua:
-Sou da África, porém me formei na Sorbonne e não entendo o que mais você quer de mim. Que mal fiz eu?
Trata-se de um louco -delírio persecutório-, e eu primeiro temo que ele nos agrida. Logo, no entanto, me dou conta de que não faz sentido ter medo. Deduzo isso observando que, tendo falado, o homem baixa a cabeça, e o seu rosto é tomado pela tristeza. Não tem como ser agressivo.
Vejo então a carapinha branca, e a negritude salta aos olhos. A partir daí, o indivíduo passa a ser o negro, e o amigo -uma criatura incapaz de fazer mal a quem quer que seja- passa a ser o branco. Confronto evidente entre o louco e o seu perseguidor imaginário, a cena também surge como confronto entre o branco e o negro ou entre o rico e o pobre.
Influência da exposição que acabo de ver? O fato é que o homem negro continua:
-Não sei por que você quer o meu mal. Você acaso não tem filhos? Eu tenho quatro.
No intento de apaziguá-lo, respondo pelo meu amigo e digo que ele tem duas filhas. Sem ouvir, o outro recomeça a brandir o seu livro e acrescenta:
-A Bíblia não mente. A justiça existe, a justiça divina. Queira você ou não. Amanhã, eu posso estar aqui vivo, e você já no caixão, morto diante das suas duas filhas.
O rosto do meu amigo se contrai. Nós, que entramos sem preocupação no metrô, estamos agora às voltas com a justiça divina, e, mesmo sem acreditar nela, eu me vejo obrigada a pensar, antes de me despedir e descer, que estou fadada a morrer -todos estamos-, e a hora ninguém sabe.
O homem negro era paranóico, porém o seu delírio me fez refletir sobre a condição humana. Sem perceber, eu me exercitei no que Salvador Dalí chamou de atividade paranóico-crítica, ou seja, um método espontâneo de conhecimento irracional, baseado na observação crítica das interpretações delirantes.
Com isso, a distância entre o homem e nós se encurtou. A palavra miserável passou a ecoar de outra maneira, e o desejo de um mundo mais justo se impôs, um mundo em que os personagens de Victor Hugo não existissem, os homens não fossem banidos por serem negros ou pobres, as mulheres não tivessem -como Cosete- de se prostituir para conseguir o leite dos filhos, e as crianças não nascessem -como Gavroche- destinadas à escola da rua, que só ensina a astúcia, que só ensina a matar e a roubar.
Quem dá ouvidos aos miseráveis, sejam eles pobres ou loucos, torna-se capaz de diferenciar o indivíduo perigoso do que não o é, além de se tornar mais humano. Porque entende com o coração que a justiça é uma necessidade.
A paz depende da justiça, e esta será mais facilmente conquistada se pudermos escutar a história da rua, que determina a da casa. Nada é pior do que andar de olhos fechados e ouvidos tapados. Bom é estar atento, porque paradoxalmente essa é a condição do nosso sossego.
Noutras palavras, a escuta é uma defesa, e nós dela não podemos abrir mão, pois, como escreveu Freud em 1915, num texto sobre a guerra e a morte, "basta pensar na ênfase dada ao "não matarás" para concluir que somos produtos de uma série infinita de gerações de assassinos". A expressão tão comum "que o Diabo o carregue" é decorrente de um desejo de morte do nosso inconsciente, que é como o antigo código ateniense. Só conhece uma punição para o crime: a morte.


BETTY MILAN é psicanalista e escritora, autora de "O Clarão" (Cultura Editores). Possui site (www.bettymilan.com.br); seu e-mail é bettymilan@uol.com.br.


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