São Paulo, quinta-feira, 16 de agosto de 2007
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Monica, peregrina

Empresária de 51 anos é a primeira mulher da América do Sul a completar os 217 km da ultramaratona de Badwater (EUA)

Divulgação
Monica Otero na ultramaratona de Badwater (EUA)


RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA

Monica Otero, 51, empresária, mãe de dois filhos, sobrevivente ao câncer e ao recente fim de um casamento de 28 anos, é a primeira mulher da América do Sul a completar uma das mais difíceis e exigentes corridas do planeta, a ultramaratona de Badwater, nos Estados Unidos. São 217 quilômetros que devem ser percorridos em até 60 horas, no deserto de Mojave, sob temperaturas que costumam ultrapassar os 50ºC, numa estrada de asfalto que parte do ponto mais baixo do Hemisfério Ocidental e chega até o monte Whitney, a 2.533 metros acima do nível do mar. "É um sacrifício", lembrava Monica na semana passada, confortavelmente sentada na casa em que vive em Alphaville, residencial de classe alta na Grande São Paulo. Ela ainda se recupera das bolhas nos pés e das unhas maltratadas ao longo da corrida.
A prova exige muito treino para o atleta conseguir ficar horas correndo, trotando e caminhando sob o sol, em longas subidas e descidas. Mais que isso, cobra uma fortaleza e um poder de decisão enormes para conseguir enfrentar outras adversidades, como a perda do paladar. "Qualquer coisa que você vá mastigar vira uma pasta seca e você não consegue engolir. Tudo resseca. Eu tinha fome, mas não conseguia comer. Um pedacinho de pão, um pedacinho de batata, um pedacinho de maçã, você mastiga, mastiga e não adianta. Vira uma coisa assim inexplicável, e, para você conseguir engolir aquilo, você tem que ter muita força de vontade."
Força que Monica teve de demonstrar em momentos mais difíceis e complicados de sua vida. Em 1995, descobriu um câncer no intestino. Passou por três cirurgias, fez quimioterapia, perdeu cabelo, ganhou cabelo e, depois de cinco anos, passou a ser considerada sobrevivente. Curada, em 2001 ela entrou no mundo das longas caminhadas. Chegou a percorrer parte do Caminho de Santiago, na Espanha, e participou das várias peregrinações brasileiras -Caminho do Sol, Caminho da Fé, Caminho da Luz e Caminho das Missões, todos percursos que exigem vários dias de caminhada em condições franciscanas.

Provas mais longas
Em 2004, quando enfrentava pela segunda vez os 241 quilômetros do Caminho do Sol, no interior de São Paulo, conheceu Mário Lacerda, corredor dedicado a provas mais longas que a tradicional maratona (42.195 metros). Ele colaborava com a organização da Badwater e iria criar uma versão da prova no país, a Brazil 135 (www.brazil135.com.br). O número se refere à quantidade de milhas a serem percorridas, o equivalente a 217 quilômetros. Monica, que nunca tinha chegado a se dedicar ao mundo das corridas -participou, ao longo da vida, de uma prova de 5 km e de uma de 10 km-, entrou direto na seleta comunidade das ultramaratonas. Como voluntária, ajudou a organizar a Brazil 135, correu a prova-teste e sofreu por 67 horas de barro, morro e chuva para completar a competição oficial, em janeiro último.
Por essa demonstração de denodo, talvez, acabou selecionada entre os candidatos do mundo todo que se inscreveram para participar da Badwater 2007, que ela já havia conhecido no ano anterior, quando trabalhara na equipe de apoio de um dos corredores. No dia 15 de fevereiro, chegou o comunicado. "Gente do céu, fui escolhida. Eu comecei a tremer e chorar, as pernas bambearam", lembra Monica. Agora, não tinha jeito, precisava treinar. Treinar muito. Orientada pelo próprio Lacerda, 50, passava horas na academia de ginástica e nas alamedas de Alphaville, alternando caminhadas enérgicas e trotes leves.
"Duas vezes por semana, eu corria uma hora na piscina para diminuir o impacto. Logo em seguida, fazia hidroginástica e depois eu corria, no mínimo, três horas aqui no residencial." À noite, fazia musculação e, duas vezes por semana, uma sessão de "step" na sauna, para ter uma idéia do que seria correr no deserto. "Aos domingos, eu tinha os meus treinos longos, eu andava 50, 60, 70 quilômetros, que já era uma característica minha de peregrina. Andar para mim é prazeroso. O único dia de descanso era o sábado. Descanso de treino, porque eu trabalhava, era o dia em que eu fazia as compras para a cafeteria que eu tinha aqui em Alphaville."
Um dos problemas dos treinos longos era a alimentação, ainda herança das cirurgias contra o câncer, que lhe deixaram o intestino reduzido. "Eu tenho muitas restrições alimentares. Não como nada com fibra, não tomo leite nem iogurte. Nada de grãos, com exceção do arroz. A única fruta que eu como é maçã, sem casca. Agora que eu estou introduzindo banana, depois de dez anos."

Separação
Ela comia um sanduíche e seguia pelas alamedas do chique residencial. Às vezes, com o coração em frangalhos, pois, em março, Monica se separou do marido. O filho caçula, de 15 anos, foi morar com o pai. "Foi um acordo, mas interiormente eu não aceitava. Tanto é que eu treinava, eu subia essas ladeiras chorando. Como eu chorei, desesperadamente. Foi um ano assim, uma reviravolta na minha vida, porque eu fui aceita para fazer essa prova, acabou um casamento de 28 anos, eu vendi o comércio que eu tinha..." Sobraram os treinos. Quilômetro a quilômetro, enfim chegou a hora da partida. Ela levou do Brasil a companhia de Márcio Villar, um ultramaratonista que faria parte de sua equipe de apoio, integrada ainda por uma colega de peregrinações e quatro ultras norte-americanos. A responsabilidade deles seria mantê-la hidratada e fresca, alimentada e de espírito forte hora após hora no deserto.
A prova, depois de tudo isso, talvez fosse o mais fácil. Mas ainda faltavam 21 dias de aclimatação no deserto. Fez sua base em um hotel em Stovepipe Wells e a cada dia treinava alguma coisa diferente. Chegou a puxar pneus em caminhadas de até um hora, para aumentar a força e a resistência. Descobriu que a roupa especial, de secagem rápida, virava um forno sob o sol. E tratou de experimentar uma calça comum, de algodão, que mantinha molhada. Para testar a funcionalidade, entrou de roupa e tudo na piscina do hotel e depois saiu pelo deserto.
E assim iniciou a corrida, às 8h do dia 23 de julho. "Eu só queria terminar aquilo. Tinha prometido para os meus filhos que eu iria terminar." Com gelo sob o boné, recebendo apoio dos colaboradores, correndo e trotando com a roupa sempre molhada, comendo azeitonas e bebidas isotônicas (e, mesmo assim, sofrendo uma diarréia no meio do caminho), ela de fato terminou. Levou 54 horas, 16 minutos e 26 segundos, mas chegou. Foi a 75ª colocada em 78 que completaram a prova -dos 84 corredores que largaram, seis abandonaram no meio do caminho.
Fica a pergunta: por que tudo isso? A peregrina responde: "O que eu ganhei? Uma medalha, muitos amigos e uma satisfação interior muito grande. Parece dever cumprido. Eu estou feliz. Feliz."

Leia trechos da entrevista em www.folha.com.br/rodolfolucena


Peregrinações
Caminho de Santiago
Distâncias de até cerca de 800 km, conforme o percurso escolhido pt.wikipedia.org/wiki/Caminhos_de_Santiago

Caminho do Sol
241 km
www.caminhodosol.org/

Caminho da Luz
195 km
www.caminhodaluz.org.br/

Caminho da Fé
Cerca de 400 km
www.caminhodafe.com.br/Brasil/index.htm

Caminho das Missões
Diversos percursos
www.caminhodasmissoes.com.br/



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