São Paulo, quinta-feira, 16 de agosto de 2007
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Comportamento

destino: ajudar alguém

"Turismo voluntário" conquista adeptos no Brasil e pelo mundo; é preciso estar preparado para tirar proveito da experiência

AMARÍLIS LAGE
PRISCILA PASTRE-ROSSI

DA REPORTAGEM LOCAL

Para Tiago Florêncio Marques, 21, a viagem que fez no ano passado para Cuenca, no Equador, foi marcante. Tombada como patrimônio histórico em 1999, a cidade concentra bons restaurantes, pousadas charmosas e bares badalados.
Mas ele não quis aproveitar nada disso. De lá, Tiago e outros cinco colegas encararam mais duas horas de viagem com destino a uma região de vales chamada Sevilla de Oro. Os tais restaurantes, pousadas e bares de Cuenca, que é considerada uma das mais importantes cidades do império Inca, foram trocados pela gentileza dos moradores da vila, que insistiam para que o grupo aproveitasse a estadia -de um mês- em suas casas.
Os passeios turísticos convencionais também foram deixados de lado. Eles estavam lá para fazer trabalhos voluntários com as crianças. "Dávamos aulas de inglês e de esportes -principalmente futebol e basquete- para a garotada entre oito e 13 anos", conta.
Mas Sevilla de Oro foi só uma das paradas do grupo. Em um ano, os amigos visitaram outros cinco países da América Latina levando conhecimentos básicos de uma segunda língua e de práticas esportivas para as comunidades -em sua maioria, carentes. "Tranquei a faculdade nesse período não só para conhecer outras culturas mas também para ter a oportunidade de vivê-las", diz.
Com o mesmo intuito, o estudante de direito Conrado Callas, 22, foi com um amigo para a África do Sul. Depois de três dias em Johannesburgo, eles seguiram viagem até uma vila próxima à região de Singida, na Tanzânia.
No local, onde vivem cerca de 3.000 pessoas, eles e mais quatro aventureiros vindos de outros países se revezaram entre os cuidados com o acampamento e a construção de casas e reservatórios de água. "As crianças não estudavam porque os professores moravam na cidade, fora da vila. Ajudamos a construir casas -desde a fabricação dos tijolos até a colocação de molduras nas portas- e toda a infra-estrutura de que os professores precisavam para que pudessem se mudar para lá", conta.
O que as turmas de Tiago e Conrado praticaram é um conceito que tem conquistado cada vez mais adeptos no mundo, incluindo o Brasil: o "volunturismo".
"O termo 'turismo voluntário' se aplica a turistas que, por várias razões, prestam serviço voluntário de forma organizada em suas viagens, ajudando a aliviar a pobreza material de certos grupos sociais e a restaurar alguns ambientes ou pesquisando aspectos daquela sociedade", disse à Folha Stephen Wearing, Ph.D. em formas alternativas de turismo e professor do departamento de lazer, esporte e turismo da Universidade de Tecnologia de Sidney, na Austrália.
Segundo ele, viagens com esse enfoque têm se tornado uma tendência crescente na indústria do turismo e começam a receber atenção dos pesquisadores, que estudam a motivação desses viajantes e o impacto dessas ações.
Entre os aspectos que levam as pessoas a buscar esse tipo de experiência, Wearing cita estudos que apontam a vontade de fazer diferença e de ampliar a rede de relacionamentos e o desejo de imersão cultural.
A estudante Wanessa Singh, 22, está no último grupo. Durante o intercâmbio para estudar parte do ensino médio na Polônia, ela procurou um centro de voluntários e começou a dar aulas de polonês para filhos de refugiados. "Numa viagem normal, os guias só mostram o lado bonito de tudo. Ao fazer um trabalho voluntário, eu entrava em contato com os problemas da Polônia e dos países vizinhos e entendia como eles buscavam resolvê-los. Acabei participando mais facilmente da cultura e me sentindo muito mais inserida do que quem só ia às aulas."
Outras pesquisas também associam ao trabalho voluntário, de modo geral, o interesse em ganhar experiência profissional ou exercitar habilidades que não são usadas freqüentemente em outras áreas, a vontade de crescer emocionalmente e expressar valores que considera importantes e mesmo a busca por soluções para problemas pessoais ou sentimentos negativos, como a culpa -nesses casos, o serviço altruísta pode servir como uma válvula de escape.

Mais saúde
Quem faz o bem para os outros acaba também ajudando a si mesmo. De acordo com um relatório baseado em pesquisas recentes divulgado em abril deste ano pela Corporation for National & Community Service (a maior instituição de apoio financeiro ao voluntariado dos Estados Unidos), quem realiza serviço voluntário costuma ter menor taxa de mortalidade, maior habilidade funcional e menor índice de depressão ao envelhecer.
O documento cita, entre outras, uma pesquisa da Universidade Duke, que mostra que pessoas que prestaram algum serviço voluntário após um ataque cardíaco demonstravam menos desespero e depressão, por exemplo. Mas os efeitos mais marcantes têm sido encontrados em idosos. Um dos primeiros estudos a estabelecer a relação entre voluntariado e longevidade foi divulgado pela Universidade de Michigan em 1999. O trabalho mostrou que a explicação para essa relação não era, como se poderia supor, que as pessoas prestavam serviço voluntário por já serem naturalmente mais saudáveis, e sim que a atividade voluntária trazia saúde aos idosos.
Entre as hipóteses para os benefícios na terceira idade está o fato de que o trabalho voluntário provê tanto atividades físicas e sociais quanto um senso de relevância aos praticantes, o que pode ser especialmente satisfatório para aqueles que se ressentem da aposentadoria.
Entretanto, apesar de o número de voluntários com mais de 55 anos estar aumentando, a maior parte das pessoas que exercem esse tipo de atividade tem entre 35 e 44 anos, afirma Wearing.
"Um dos indicadores do envelhecimento saudável é a prática de uma atividade altruísta", afirma Hélio Roberto Deliberador, professor de psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Mas ele ressalta que é necessário se preparar para a experiência. "A pessoa vai entrar em contato com algo que não é familiar e, para estar em condições de ajudar, é preciso ter indicações básicas. Nada melhor do que se juntar a outras pessoas que tenham experiência na área e se qualificar para o trabalho", sugere.
Esse apoio também pode ajudar o voluntário a lidar com as limitações da própria ação, que podem ser frustrantes em alguns casos. "Não basta só vontade de ajudar. Fazer algo por conta própria pode até atrapalhar mais do que ajudar."

Opções
Para Maria Valéria Bonin, professora do curso de turismo da Universidade Anhembi Morumbi, o conceito de "volunturismo" está mais difundido nos Estados Unidos e na Europa. "Ainda não existem empresas especializadas em mandar voluntários para o exterior no Brasil. Por enquanto, quem pode desempenhar esse papel de alguma forma são as operadoras de intercâmbio", diz. Ela se refere a agências como a Experimento (www.experimento.org.br), a Free Way (www.freeway.tur.br) e a Central de Intercâmbio (www.ci.com.br), que, apesar de não trabalharem diretamente com o turismo voluntário, costumam oferecer opções de pacotes para os interessados em conhecer e ajudar comunidades carentes ou ribeirinhas.
Quem quiser um trabalho específico terá de recorrer às internacionais -a maioria criada há menos de cinco anos. O site Go Differently (www.go differently.com/voluntourism. asp), por exemplo, surgiu em 2005. O primeiro trabalho realizado foi o envio de voluntários que pudessem prestar assistência à população afetada pelo tsunami na Tailândia.
Ajudar a preservar tartarugas na Costa Rica ou a cuidar de leões na África do Sul estão entre os programas mais exóticos de turismo voluntário do "I to I" (www.i-to-i.com), que oferece até pacotes para conservação do ecossistema em Galápagos, além de ajudas humanitárias.
No Creative Corners (crea tive-corners.com), uma dúvida recorrente entre os interessados no volunturismo é esclarecida logo no texto de apresentação: não é preciso ter uma profissão específica, como médico ou enfermeiro, para desenvolver algum tipo de trabalho nos destinos propostos -entre eles, o Brasil.
Está lá: "Você poderia brincar com crianças de um orfanato na Bolívia? Ensinar fotografia na Nicarágua? Redecorar o quarto de uma criança ou fazer um jardim no Peru? Então, nós precisamos de você!" "Primeiro, precisamos saber o que o viajante deseja fazer. Para isso, fazemos perguntas simples, como: 'Você prefere trabalhar com animais ou com humanos? Animais soltos ou presos?' E assim marcamos uma entrevista até definir se o viajante vai a um santuário de animais maltratados em que poderá tocar nos bichos, dar mamadeira para filhotes e passear com eles na coleira, ou se ele vai para uma vila Nbedele (tribo africana que vive na província de Mpumalanga) ajudar a construir casas", disse à Folha Marnie Heim-Stafford, dona da Voluntours, operadora de turismo voltada para programas voluntários em vilas tribais, reservas naturais, orfanatos e hospitais veterinários na África do Sul, país muito procurado por turistas voluntários.
"As agências de turismo comuns estão procurando muito os nossos serviços, pois os turistas que vêm para a África do Sul querem, cada vez mais, ter aquilo que se chama experiência. Eles querem fazer o safári, mas querem também tocar nos animais. Querem visitar a tribo africana, mas melhor ainda se puderem passar alguns dias contando histórias para as crianças", afirma Heim-Stafford. Brasileiros que pretendem fazer turismo voluntário em outros Estados, sem sair do país, podem recorrer diretamente a ONGs que atuem em projetos próximos -ou no local- que desejam visitar. Os sites www.portaldovoluntario.org.br e www.afs.org.br recebem cadastros de interessados em programas que precisam da ajuda de voluntários. De lá para cá As poucas agências nacionais que trabalham com o conceito de "volunturismo" atuam recebendo estrangeiros para fazer esse tipo de trabalho aqui no Brasil -e não com a proposta de recrutar e enviar brasileiros para o exterior. É o caso da associação carioca Iko Poran (www.ikoporan.org).
Por um custo mínimo de R$ 1.500, os interessados têm direito a alojamento de quatro semanas no Rio de Janeiro, onde são encaminhados a programas de voluntariado nas favelas. "Recebemos principalmente ingleses e americanos, mas vem gente do mundo inteiro", diz Luis Felipe Murray, fundador da associação. A Iko Poran recebeu os primeiros voluntários em 2004. "Foram 18 participantes no primeiro ano. Em 2006, esse número saltou para 166. Devemos fechar este ano com mais de 200 participantes", diz. O primeiro passo para os estrangeiros que querem participar é enviar à associação uma ficha de inscrição especificando a sua profissão e dizendo em qual tipo de atividade gostaria de ajudar. Com isso em mãos, é a equipe da entidade que direciona o voluntário ao projeto que mais tem a ver com as suas habilidades. A americana Amanda Earley e o colombiano Juan Guilloc, ambos com 21 anos, conheceram a associação pela internet e toparam o desafio.
Ela, que é garçonete em Nova Orleans e estuda relações internacionais, está ajudando a organizar uma exposição de fotografia em Londres com as crianças da favela da Maré (zona norte do Rio). "Cheguei há três meses e não queria ir embora. O ato de ajudar o próximo me rendeu muitos amigos aqui", diz. Já Juan, que atualmente mora nos Estados Unidos, onde estuda engenharia química, está ensinando inglês na favela do Pereirão, em Laranjeiras. "Vou embora com duas certezas. A primeira é que, em apenas um mês, eu não mudei a vida de ninguém. A segunda é que compartilhei momentos inesquecíveis tanto para mim quanto para os alunos", diz.
Mas, como ressalta a diretora comercial Eleonora Mendes, que há cinco anos presta serviço voluntário na Uipa (União Internacional Protetora dos Animais), é possível se dedicar à comunidade em qualquer lugar. Há um mês, em uma viagem à Itália, ela aproveitou para conhecer uma entidade de defesa animal. Não desenvolveu nenhum trabalho lá, mas trouxe idéias para aplicar no Brasil. "Eu acho fantástica essa proposta de turismo voluntário, adoraria ir para a Etiópia para ajudar lá, por exemplo. Mas também sei o que está aqui e acho que o trabalho voluntário deve começar com o que está à sua frente."

Colaborou HELOÍSA LUPINACCI, da Reportagem Local


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