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São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

Queremos morar num espaço "com a nossa cara". Essa dupla função mercadoria/sonho dos imóveis residenciais materializa-se no meio-fio. Na pessoa da caçamba

Cada caçamba é uma reforma

A presença da caçamba na paisagem urbana de São Paulo não é tão nova. Encontramos pelo menos uma em cada quadra. Lá está ela -feia, suja, mal pintada, cheia de entulho e de um certo lixo que a vizinhança joga dentro dela, prenunciando a necessidade da coleta seletiva.
Há quantos anos surgiu, encostada no meio-fio, não sei precisar. Chegou de mansinho parecendo, ser "do bem". Doce ilusão. Horrendas, ficam paradas, dias e dias, ostentando canos velhos, cabos de vassoura, caixotes, além de entulho.
No começo, diz a minha memória, elas chegavam num dia e, no dia seguinte, sumiam cheias de entulho.
Uma caçamba não é só um jeito inventado para ajudar a cidade a se livrar do entulho produzido pelo seu eterno refazer-se. Elas apresentam efeitos colaterais. Ocupam espaço de estacionamento. Por não serem iluminadas, atrapalham o trânsito. E -repito- são muito feias.
Esse entulho todo à vista me leva a imaginar o número de imóveis que estão em reforma a cada momento. Pois cada caçamba é uma reforma.
Na frente do prédio em que moro, que tem muitos apartamentos por andar e muitos andares, é rara a semana em que pelo menos uma caçamba não esteja a enfeitar, de horror, nossa porta.
Tenho observado em conversas que a compra de um imóvel inclui dois valores: o preço de compra e o da reforma. Às vezes, nem se tem imóvel em vista, mas já se sabe que vai haver reforma. A idéia de que existe no mundo um imóvel satisfatório está excluída.
Sentimo-nos pressionados a refazer, sob medida, o lugar onde vamos morar. Não é uma mudança livre. Ela deve respeitar a eventualidade de uma futura venda. Não é sensato diminuir o valor do imóvel.
Por exemplo, diminuir o número de aposentos ou pôr cerâmica na sala pode afetar o valor do imóvel. Quando compramos, escolhemos uma mercadoria. No projeto de reforma, a mercadoria vira sonho. Jogamos fora o espaço/mercadoria e o substituímos pela singularidade que nos arrancará do anonimato. Queremos morar num espaço "com a nossa cara". Essa dupla função mercadoria/sonho dos imóveis residenciais materializa-se no meio-fio. Na pessoa da caçamba.
Tudo poderia levar-nos a crer que estamos falando de imóveis usados, mas não é, não. Apartamentos novinhos, muitas vezes comprados ainda em construção, também são mudados muito mais frequentemente do que se imagina. Sempre há uma parede a mais, um elemento vazado a menos, um piso que não agrada, um rebaixamento de teto que se deseja.
Em tempos que não são tão longínquos, as pessoas atendiam às suas exigências de individuação no dispor dos móveis, na escolha das cores da parede, nos tapetes, nos enfeites, na luz etc. Uma casa entre casas geminadas nunca foi nem é igual às outras. Parece haver um certo vandalismo, um quê iconoclasta nessa maneira de lidar com as paredes que nos acolhem.
Nada é sagrado.
Eu chego.
Eu transformo.
Sou poderosa.
A quantidade de caçambas pela cidade fala de uma intensa necessidade de atividade criadora.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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