São Paulo, quinta-feira, 17 de maio de 2007
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Outras idéias - Dulce Critelli

O dom humano da fé

O movimento em torno da vinda do papa ao Brasil me lembrou da minha estréia como monitora da disciplina de cultura religiosa na PUC-SP. Os alunos discutiam um texto que dizia que a fé era adquirida por meio do batismo. Novata na filosofia, ignorante na teologia e, sobretudo, pretensiosa como é comum ser aos 18 anos, contestei o dogma, afirmando que a fé era uma possibilidade natural de todos os homens. Parecia-me, no mínimo, incongruente que só os cristãos tivessem a possibilidade da fé.
Demorei para entender que o dom da fé e o ato da fé são coisas distintas. Assim como nascemos com a possibilidade natural de falar, mas, para falarmos, é preciso aprender uma língua (ninguém simplesmente fala, mas fala português, inglês, italiano...), o exercício da fé religiosa também implica o aprendizado e a introjeção de uma estrutura, que tem seus valores, suas regras e sua doutrina, além de ser compartilhada por um povo ou por uma comunidade.
É isso que explica a existência das diversas religiões, cada uma com suas interpretações e sua maneira especial de lidar com o sagrado.
Mas, existencialmente, a fé é esse dom humano de simplesmente crer em algo, que tanto pode ser um deus quanto a ciência ou o fato de que alguém nos ama e de que realizaremos nossos objetivos...
Sem acreditar em alguma coisa, ficamos às escuras e paralisados. As crenças nos fornecem os horizontes e os destinos dos nossos pensamentos, palavras e obras. Elas são o alicerce de todo o nosso poder de criar mundo, vida, história. A fé não move só montanhas mas também toda a nossa existência.
Li, em algum lugar, que o medo é a fé no mal. E, quando temos fé no mal, ficamos como se estivéssemos aguardando que ele aconteça, isto é, nos preparamos para sofrer o mal. O mesmo acontece com todas as nossas emoções e todas as nossas idéias, boas ou más.
Elas nos põem de frente para o que pode acontecer e, de alguma maneira, nos empurram para que as coisas em que acreditamos, conscientemente ou não, aconteçam. A vida responde à nossa fé, às nossas crenças. E essa magia de fazer acontecer uma realidade começa com os nossos pensamentos e com as nossas palavras.
Lembro Guimarães Rosa, falando pela boca de Riobaldo: "...e como o que é para ser são as palavras...". Lembro também do Gênesis: "No começo era o verbo..." e também "Deus disse, faça-se a luz, e a luz foi feita". É o poder de criar que começa pela palavra, mas se funda na crença de que algo, como a luz, pode ser feito.

[...] Sem acreditar em algo, ficamos às escuras; as crenças nos fornecem horizontes dos pensamentos, palavras e obras


DULCE CRITELLI, terapeuta e consultora existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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