São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2008
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Entre só ouvir e cantarolar também


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Ouvir música prestando atenção silenciosamente é uma experiência bem diferente de ouvi-la cantarolando junto


Eu adoro cantarolar. Quando ouço músicas que conheço, então, acho quase irresistível cantar junto. Outra noite, enquanto jogávamos cartas, minha filha de oito anos pediu que eu colocasse um disco do Tom Jobim. Queria ouvir -"qual é a faixa mesmo?"- "Garota de Ipanema", de que ela "gosta muito". Fi-quei surpresa e contente com sua erudição, e logo estávamos jogando cartas e cantarolando junto. Meu marido, montando seu computador na mesa ao lado, comentou, bem-humorado: "Vocês gostam de atrapalhar a música, que engraçado!"
Ele, que já foi produtor musical, tem suas razões para achar que cantarolar atrapalha a música -ainda que minha filha e eu sejamos bastante afinadas. Quem se profissionaliza em ouvir as menores distorções durante uma gravação não pode se dar ao luxo de se distrair cantarolando junto. Sem contar que, para quem quer ouvir a voz do cantor e apreciar as nuances da música em um show, o vizinho cantarolando ao lado é tudo o que não se deseja. Mas, se não há vizinhos querendo o seu silêncio e você não está analisando a música, qual seria o problema em cantarolar junto com a música?
Do ponto de vista da neurociência, ouvir música prestando atenção silenciosamente é uma experiência bem diferente de ouvi-la cantarolando junto. Não existe uma área única responsável pela música nem pela linguagem. A música, aliás, aproveita as mesmas áreas do cérebro que nos permitem a linguagem -e temos, por exemplo, uma especializada em ouvir letra e música, localizada no lobo temporal; uma especializada em compreender os sons e seus significados; outra no córtex pré-motor que se encarrega de produzir palavras e melodia. Apreciar a música em silêncio envolve apenas as primeiras; cantarolar junto recruta também a última.
A diferença explica, em parte, por que não damos a mesma atenção à música quando cantarolamos junto: é preciso supervisionar vários processos a mais, desde os que encontram as palavras da vez até os que as pronunciam nas horas certas. Ocupado com isso, o cérebro não consegue se dedicar a apreciar a música do mesmo jeito. Se isso chega a atrapalhar? Não vou dizer que ouvir uma música cantarolando-a seja um problema. É uma maneira diferente de apreciá-la, certamente -mas, ainda assim, também é um prazer. Ao menos enquanto não atrapalha o prazer dos outros...


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva)

suzanahh@folhasp.com.br



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