São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2006
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Outras idéias

Dulce Critelli

Batuque no tubinho

Era um sábado. Eu tinha saído para almoçar com uma amiga, também professora da PUC, e passamos na casa dela para mais um café. Sua faxineira abriu a porta e foi logo dizendo que o professor fulano havia telefonado e deixara um recado. Qual era? Que à noite haveria "batuque no tubinho".
Quebramos a cabeça para decifrar o recado, que, por inúmeras razões, jamais poderia ser aquele. Esgotadas as alternativas, ligamos para nosso colega.
Do que se tratava? Não, não era "batuque no tubinho", era "debate no Tuquinha"!
Nunca as coisas são o que são por si mesmas. Tudo o que vemos, ouvimos ou pensamos vem embrulhado pelo repertório cultural do grupo ou da sociedade a que pertencemos. Independentemente do nosso Q.I. ou da nossa instrução, somos incapazes de compreender, reconhecer e até mesmo perceber coisas que estejam muito fora de nosso universo de experiências. No mais das vezes, não se trata de coisas tão inusitadas, mas da linguagem que usamos para falar delas.
Li num estudo realizado por lingüistas sobre um grupo de nativos de uma ilha filipina que não conseguia distinguir visualmente entre a cor vermelha e a cor laranja.
Constataram que aquela dificuldade coincidia com o fato de tais pessoas também terem, no seu vocabulário, só uma palavra para nomear ambas as cores.
Quando foram associadas duas palavras diferentes, uma para cada cor, elas começaram a ver e a distinguir o vermelho e o laranja.
As palavras são nossos olhos e nossos ouvidos e nos dão a feição da realidade. Aristóteles definia o homem como um "animal falante". Vivemos falando, e nossa linguagem funciona como uma bússola, que guia as nossas compreensões e, por paradoxo, determina nossas incompreensões e todos os nossos mal-entendidos.
Não é a finalidade básica das nossas conversas expressar nossas diferenças, tanto quanto superá-las? Não passamos quase todos os nossos dias tentando nos fazer entender ou tentando convencer os outros da verdade e do valor das nossas interpretações da vida e do mundo? Não é conversando que arranjamos companhia para nossas idéias e para a realização de nossos sonhos e projetos? E não é, também, conversando que acabamos por fazer inimigos e adversários?
Mesmo que falemos a mesma língua, raramente falamos a mesma linguagem. E é ela que nos une e nos separa, nos organiza em tribos, grupos, épocas históricas, crenças e profissões.
Entre batuques e debates, entramos e nos situamos no mundo pelas mãos das palavras. Somos palavras.

[...] As palavras são nossos olhos e nossos ouvidos e nos dão a feição da realidade


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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