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OUTRAS IDEIAS
Dulce Critelli
A impostora
[...] APARÊNCIA E MERA APARÊNCIA, VERDADE E MENTIRA SÃO COISAS QUE SE CONFUNDEM NA ESFERA DA VIDA PÚBLICA
Os sobreviventes dos
ataques de 11 de setembro tinham em
Tania Head, presidente da associação que formaram meses após a tragédia, sua
principal representante. Entre
as vítimas, ela foi a de maior
presença pública.
Tania dizia estar, no momento da tragédia, num dos andares
acima daquele onde o avião teria entrado. Também dizia ter
perdido o noivo, que estava na
outra torre, além de ter sofrido
uma séria queimadura num dos
braços e de ter ficado desacordada por cinco dias.
Para seus companheiros, a
história de Tania parecia a mais
comovente. Apesar disso, sua
atuação junto à associação era
bastante dinâmica. Ela doou dinheiro, transformou o grupo de
sobreviventes numa organização oficial, conseguiu para eles
financiamento do governo.
Depois de cinco anos, porém,
veio a revelação: Tania não se
chamava Tania, e sim Alicia.
Não era americana, mas espanhola. E sequer estava nos EUA
quando o ataque aconteceu.
Acionada pela associação dos
sobreviventes, a Justiça dos
EUA afirmou que, apesar do
engodo, Tania não poderia ser
acusada de nenhum crime,
uma vez que não tivera com ele
nenhum proveito financeiro
pessoal. Não tivesse sido descoberta, Tania Head teria passado
para a história como heroína.
Soube do caso em um documentário exibido na TV paga.
Interpretações psicológicas à
parte, o que teria levado Tania a
inventar uma mentira de tal
proporção e protagonizar uma
história da qual não fazia parte?
Acho que ela não queria permanecer invisível, como a
maioria de nós, nem ser esquecida. Queria ser vista e ouvida
numa existência que lhe trouxesse fama e glória. Apoiando-se numa história extraordinária, tornava-se, por sua coragem e empreendedorismo, heroica. Certamente sabia que só
os agentes de grandes feitos
têm lugar na memória coletiva.
Mas essa interpretação é óbvia. O mais intrigante é o fato de
que a história de Tania faz saltar aos olhos dinâmicas próprias da vida política. Tania torna-se uma impostora por ter-se
feito passar pelo que não era:
uma sobrevivente do 11 de Setembro. Mas o que ela fez como
presidente da associação dos
sobreviventes também se converte em farsa?
E não faz parte da política
que os agentes políticos, raras
exceções, se apresentem para
os eleitores como os personagens que eles não são? Como
sabermos, ao certo, quem são?
Aparência e mera aparência,
verdade e mentira são coisas
que sempre se confundem na
esfera da vida pública.
De qualquer forma, não somos alcançados pelo que os agentes políticos dizem que são, mas pelo
que fazem. Daí a importância
dos feitos e de suas consequências, pois eles dão a medida dos
acontecimentos e, portanto,
são os únicos critérios para o
seu próprio julgamento.
Já vimos esse filme que Tania protagoniza, pois temos tido, ao longo da história, muitos
impostores na cena política. Infelizmente, quase sempre seus
atos deixaram de ser julgados.
E seus agentes não sofrem a
consequência de suas ações.
Dois aspectos diferenciam os
atos de Tania da impostura comum em política. Tania ajudou, de fato, muitas pessoas. E
só foi desmascarada porque
agia sozinha, sem assessores
nem correligionários.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de
"Educação e Dominação Cultural" e "Analítica
de Sentido" e coordenadora do Existentia -
Centro de Orientação e Estudos da Condição
Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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