São Paulo, quinta-feira, 17 de setembro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Dulce Critelli

A impostora

[...] APARÊNCIA E MERA APARÊNCIA, VERDADE E MENTIRA SÃO COISAS QUE SE CONFUNDEM NA ESFERA DA VIDA PÚBLICA

Os sobreviventes dos ataques de 11 de setembro tinham em Tania Head, presidente da associação que formaram meses após a tragédia, sua principal representante. Entre as vítimas, ela foi a de maior presença pública.
Tania dizia estar, no momento da tragédia, num dos andares acima daquele onde o avião teria entrado. Também dizia ter perdido o noivo, que estava na outra torre, além de ter sofrido uma séria queimadura num dos braços e de ter ficado desacordada por cinco dias.
Para seus companheiros, a história de Tania parecia a mais comovente. Apesar disso, sua atuação junto à associação era bastante dinâmica. Ela doou dinheiro, transformou o grupo de sobreviventes numa organização oficial, conseguiu para eles financiamento do governo.
Depois de cinco anos, porém, veio a revelação: Tania não se chamava Tania, e sim Alicia. Não era americana, mas espanhola. E sequer estava nos EUA quando o ataque aconteceu.
Acionada pela associação dos sobreviventes, a Justiça dos EUA afirmou que, apesar do engodo, Tania não poderia ser acusada de nenhum crime, uma vez que não tivera com ele nenhum proveito financeiro pessoal. Não tivesse sido descoberta, Tania Head teria passado para a história como heroína.
Soube do caso em um documentário exibido na TV paga. Interpretações psicológicas à parte, o que teria levado Tania a inventar uma mentira de tal proporção e protagonizar uma história da qual não fazia parte?
Acho que ela não queria permanecer invisível, como a maioria de nós, nem ser esquecida. Queria ser vista e ouvida numa existência que lhe trouxesse fama e glória. Apoiando-se numa história extraordinária, tornava-se, por sua coragem e empreendedorismo, heroica. Certamente sabia que só os agentes de grandes feitos têm lugar na memória coletiva.
Mas essa interpretação é óbvia. O mais intrigante é o fato de que a história de Tania faz saltar aos olhos dinâmicas próprias da vida política. Tania torna-se uma impostora por ter-se feito passar pelo que não era: uma sobrevivente do 11 de Setembro. Mas o que ela fez como presidente da associação dos sobreviventes também se converte em farsa?
E não faz parte da política que os agentes políticos, raras exceções, se apresentem para os eleitores como os personagens que eles não são? Como sabermos, ao certo, quem são? Aparência e mera aparência, verdade e mentira são coisas que sempre se confundem na esfera da vida pública.
De qualquer forma, não somos alcançados pelo que os agentes políticos dizem que são, mas pelo que fazem. Daí a importância dos feitos e de suas consequências, pois eles dão a medida dos acontecimentos e, portanto, são os únicos critérios para o seu próprio julgamento.
Já vimos esse filme que Tania protagoniza, pois temos tido, ao longo da história, muitos impostores na cena política. Infelizmente, quase sempre seus atos deixaram de ser julgados. E seus agentes não sofrem a consequência de suas ações.
Dois aspectos diferenciam os atos de Tania da impostura comum em política. Tania ajudou, de fato, muitas pessoas. E só foi desmascarada porque agia sozinha, sem assessores nem correligionários.

DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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