São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 2007
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S.O.S. família - Anna Verônica Mautner

Idéias que desembestam

E os pais com tudo isso? E o super-homem? E a Barbie? E a violência dos joguinhos eletrônicos? Tudo tem a ver, e ninguém é culpado. De fato.
Meninas cheias de sonhos e esperança morrem de inanição ou subnutrição -os jornais dizem anorexia. O fato é que páginas e páginas são escritas sobre o culto à magreza, o apego a um só tipo de corpo, a um só modelo de beleza.
Dá susto em adultos sensatos ver na mídia que jovens deixam a vida com o corpo que queriam ter. Que suicídio é esse? Quero divagar um pouco pelo mundo dos brinquedos, filmes e histórias em quadrinhos que essas meninas tiveram ao seu dispor. Não ouso dizer que tal boneca ou tal história em quadrinho seja culpada. Não quero culpar nem pretendo entender completamente essa tragédia.
No momento, eu me satisfaço em lembrar, descrever e, quem sabe, surpreender um pouco. Lá vou eu com minhas memórias de novo! Lembro-me dos bonecos rechonchudos, que tinham bochechas coradas, braços e pernas gorduchos. Dava vontade de cuidar deles. Eram bonecos-bebês, e as de hoje são bonecas-jovens.
Só que os bebês despertavam nas crianças emoções gostosas, como cuidar, alimentar e aquecer. As bonecas de hoje são só para mostrar. Têm figura longilínea, roupas da moda, pernas e braços longos. Para os meninos, existiam os soldadinhos de chumbo. Os bonecos masculinos de hoje são os super-homens e o Ken (namorado da Barbie), que também são longilíneos e ostentam musculatura harmônica.
Se quiserem crescer parecidas com seus bonecos, as crianças vão ter que fazer exercícios de alongamento. Quem não luta, não malha, não faz dieta para ser como as bonecas com as quais brinca peca contra si e contra a cultura. É um fraco. De tanta vontade que os pais têm de não errar, acabam deixando os jovens sem tempo livre para brincar, inventar, crescer e se conhecer. E, quanto mais aulas conseguem enfiar no dia-a-dia dos jovens, mais se sentem acertando.
Um campinho, uma bola de verdade ou feita de meia e quatro tijolos -eis um campo de futebol! Mas onde a gente vai achar isso hoje em uma cidade? Onde houver espaço livre, sem trânsito e sem sabichões denominados modernamente de monitores, orientadores, treinadores -sempre ali, criando, sem dar espaço para que as crianças o façam. E assim as crianças só têm de obedecer, submetendo-se aos adultos.
Quem brinca hoje de casinha ou escolinha? Onde pode uma criança correr livre? Isso tudo precisa, para ser divertido, de uma ausência: a do adulto vigilante. Com ele não tem graça. Brincar no quintal sempre foi um laboratório de criatividade. Criança que podia brincar no campinho sem supervisão próxima não sentia tédio, fazia os deveres esperando a hora de sair para brincar. Pobre criança de hoje, para quem não adianta terminar uma tarefa -depois de uma aula, vem outra.
Não é à toa que a criança vem sendo vista como estressada, entediada, sem criatividade e com pouca curiosidade. Entre a geração que brincou com o boneco-bebê e a dos jogos eletrônicos, ocorreu uma ruptura. Hoje percebemos uma solidão que é verdadeira. Os jovens não dizem mais que querem ser iguais aos adultos com os quais convivem -ou diferentes deles.
Só se identificam com figuras da mídia, das quais só conhecem a aparência. Um lembrete: seres humanos livres encontram a si próprios e se conhecem. Os aprisionados conhecem melhor seus guardiões do que a si mesmos. Se nós, adultos, toparmos errar um pouco, os jovens e as crianças poderão acertar.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

CROCANTE
"Croc croc" talvez seja o som universal que as crianças, os adultos e os idosos mais gostam de ouvir quando estão comendo. A moda vai contra esse barulhinho de coisa rachando, quebrando dentro da boca. As bolachas e os biscoitos estão na mira das gorduras trans, assim como todas as frituras. Estamos nós sem mais uma ilusão: o "croc" dá impressão de mandíbulas poderosas. Tem algo a ver com a auto-estima. Só sobrou a velha maçã para nos iludir.

FAZER JUNTO
As crianças gostam, e a relação com os adultos se beneficia todas as vezes que algo puder ser feito junto. Mas preste atenção: fazer junto não é mandar o outro ajudar -ajudar não é divertido. Fazer uma bola de meia pode ser esse tipo de tarefa. O adulto e a criança podem apertar o recheio juntos, por exemplo, e não tem nada de "vem ajudar"...


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