São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 2011
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CORRIDA

RODOLFO LUCENA rodolfo.lucena@grupofolha.com.br

Em louvor quem chega depois


A inspiração dos últimos é gloriosa: eles vão em frente ainda que cada centímetro torça os músculos


A SABEDORIA popular promete, em tom que cheira a acomodada e crédula religiosidade, que "os últimos serão os primeiros".
Lamento informar que isso não condiz com a dura realidade. O fato é que os últimos chegam mais tarde, depois. O que não é desdouro nenhum, pelo menos no maravilhoso mundo das corridas de rua.
Ao contrário, como comprovam muitas histórias transcorridas em maratonas e corridas menos longas.
Na maratona de White Rock, realizada no mês passado nos EUA, o derradeiro corredor foi um sujeito de 44 anos que terminou quando a música já tinha sido desligada e os fotógrafos contratados para capturar o momento da chegada já estavam em casa descansando, descrentes de que ainda haveria algum incauto correndo.
Douglas Hartman não estava nem aí. Dolorido e emocionado, cruzou chorando a linha de chegada após mais de oito horas. Ele nunca havia chegado perto dos 42.195 metros nem treinara para o desafio, mas enfrentou a distância para homenagear a mulher, morta havia um ano.
Quase nunca são tão dramáticas as razões que levam alguém a se manter de cabeça erguida, decidido a dar mais um passo e outro ainda, apesar de o esforço parecer sobre-humano. Vejo isso nas maratonas e nas ultras, mas também em provas curtas, que recomeço a frequentar neste período em que me recupero de uma lesão.
Numa recente corrida de seis quilômetros, fiquei impressionado com o esforço feito por homens e mulheres para completar o percurso.
A maioria dos corredores já tinha ido embora, e os últimos seguiam com insistência, como a mandar um recado: "Eu vou conseguir". Ou, numa fala mais compatível com o suor que empapa o corpo: "Eu sou f***!".
De fato, esses corredores são inspiradores e poderosos. Com certeza, não têm o treino nem a capacidade dos velocistas, não levam troféus nem disputam postos, mas demonstram vontade inquebrantável e completo desprezo pela competitividade mesquinha e inútil que não poucas vezes serve de motor para quem participa de uma corrida ("vou passar aquele cara de qualquer jeito").
A inspiração dos últimos é mais gloriosa: desafiam com galhardia a distância, vão em frente ainda que cada centímetro torça músculos e maltrate a carne -que, como sabemos, é fraca. O espírito, porém, é indomável: os últimos chegam depois, mas são sempre campeões.

RODOLFO LUCENA, 53, é editor do caderno Tec e do blog +Corrida (maiscorrida.folha.com.br), ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (Record)


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