São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Anna Veronica Mautner

Sob a lei do mínimo esforço


[...] UNS SE CANSAM PRODUZINDO BENS E SERVIÇOS, OUTROS SE CANSAM PRODUZINDO O CORPO IDEALIZADO

De fazer esforço, mesmo quando necessário, ninguém gosta nem jamais gostou.
As sociedades parecem ter se organizado e conseguido sobreviver na direção de substituir e aliviar o esforço necessário para que as tarefas fossem executadas, isto é, procurando obedecer à lei do mínimo esforço. Os cidadãos, os nobres, enfim, os privilegiados viviam em sociedades onde cabia a outros executar as tarefas de produção de bens e serviços. Tarefa pesada só fazia quem a sua condição não permitisse livrar-se dela.
Desde a descoberta da roda, imagino eu, vivemos à procura de formas de eliminar os esforços cansativos. E viemos pelo tempo afora inventando maquinetas, engenhos e, por que não, leis e dogmas para justificar nossa adesão à lei do mínimo esforço, hoje vista como senso comum.
Hoje tudo mudou. Produzir bens ou serviços continua cabendo aos trabalhadores em geral, que lidam com a transformação de matéria-prima em mercadoria. Encontramos, contudo, uma significativa diferença entre os privilegiados de ontem e os de agora. Hoje, privilegiados são aqueles que, trajando os melhores tênis e "trainings", realizam, sem economia, imensos esforços para produzir e cuidar do próprio corpo. Não há lugar para o ócio na sociedade atual.
Uns se cansam produzindo bens e serviços, outros, galhardamente, se cansam voluntariamente produzindo o corpo idealizado. Realiza-se o cuidar de si preferencialmente em academias que não são de letras ou de ciências, mas sim de cultura corporal. "Personal trainers" são os mestres da nova era. Disputados, comparados, citados -tudo sob a égide do mais avançado saber trazido pela ciência dos fisiatras, fisioterapeutas, professores de educação física, cujas mensagens obedecemos sem pestanejar.
Assim, dormimos com a consciência tranqüila de quem nada deve. O corpo virou mercadoria sagrada que procuramos aperfeiçoar, agregando-lhe saúde, força e beleza.
Malhar (cuidar de si) é a oração do homem moderno que tranqüiliza a sua consciência. Preguiça de produzir objetos e serviços não é mais pecado -chama-se incompetência, má vontade, desinteresse. Trabalhar é dever que não dignifica o homem moderno. As academias, os parques e as áreas de exercício funcionam como a igreja de antigamente. Deformidades, desleixo não mais geram compaixão e sim culpa e vergonha. A imperfeição fere o olho do outro.
Parece que vou levantando uma bandeira contra exercício e esporte, mas não. O corpo pede movimento e deve ser atendido, mas sem tanta devoção. Não pretendo, aqui, fazer uma tese e sim um comentário sobre os valores que vão mudando. Já foi pecado ter falta de devoção, já foi "feio" não trabalhar, ter preguiça. No século da tecnologia do "basta apertar um botão", a preguiça continua pecaminosa; só que, agora, pecado mesmo, capital, é preguiça de tratar do corpo. Se for preciso trabalhar para isso, que seja.
E assim o mundo gira.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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