São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004
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outras idéias

anna veronica mautner

Que falem os poetas

O mundo está mais para a riqueza do arco-íris que os poetas procuram apreender, enquanto os racionalistas se satisfazem em nomear as sete cores que o compõem

Há pouco tempo me dei conta de como são mal definidos certos sentimentos da nossa vivência diária dos quais falamos com naturalidade. Vergonha, constrangimento, remorso, ressentimento caem nessa categoria de "muito usados e pouco explicados". Às vezes, até se procura defini-los, mas falta precisão de linguagem. Em textos científicos ou paracientíficos, eles aparecem mais como adjetivos qualificativos do que como conceitos.
Que seja dada a palavra aos poetas para falar sobre o horror que nutrimos pelo ridículo ou pelo pânico que temos de perder a face. São eles, poetas, que mais perto chegam de dar precisão ao que sentimos.
Por outro lado, culpa, inveja, raiva, ira, transgressão, agressividade, amor, apego, ódio, felicidade são palavras / conceitos / expressões que recebem atenção, muitas vezes até de forma redundante. Cabe aos cientistas pesquisar, pensar, procurando limpar desse campo as ambivalências e ambigüidades. Já aos poetas cabe enaltecer a riqueza do mundo cuja aparência é muito mais rica do que o sim e o não, o branco e o preto, o certo e o errado. O mundo está mais para a riqueza do arco-íris que os poetas, mágicos da palavra, procuram apreender, enquanto os racionalistas se satisfazem em nomear as sete cores que o compõem. A vergonha, por exemplo, serpenteia, sem se fixar, em volta do medo do ridículo. O ressentimento fica entre assumir-se responsável ou jogar para o mundo a responsabilidade do ocorrido. A ciência é mal instrumentada para lidar com toda a variedade de nuances que estão entre o agradável e o desagradável, entre o positivo e o negativo. Ela procura mais agrupar e categorizar do que apreender. E assim certos sentimentos, apesar de estarem dentro do campo de interesse dessas ciências, curiosamente escorregam e acabam sendo passados por alto.
Eu também, tal qual meus colegas, não sei definir esses fatos da vida emocional. Quem sou eu para esclarecer questões que teimam em fugir de explicação? Cada vez que se tenta enquadrá-las, o "não é bem isso" desponta para nos frustrar.
Diante disso, fico aqui a sentir vergonha, acanhamento, embaraço e constrangimento, pois, afinal, estou a me declarar "incapaz". Por exemplo, o constrangimento não é escolha. Ele se impõe. Não é evitável. Quando obrigada a bancar uma mentira alheia, sinto um apertão, meus órgãos internos reagem, dando uma sensação ruim de mal-estar. Não é bem medo nem raiva, se bem que tem tudo isso misturado.
É difícil definir os fatos mentais que são confusos, imprevisíveis, inevitáveis. Posso tentar corrigir um erro, um crime ou um pecado. Posso pedir desculpas, perdão ou absolvição. Posso ainda pedir tempo para reparar o malfeito. Aí há espaço de escolha, de livre-arbítrio. Diante de outras situações, especialmente das mais ambíguas, o recurso do perdão, da absolvição é difícil, se não impossível. Não há espaço para o livre-arbítrio diante do ridículo, da vergonha, do remorso, do constrangimento, do ressentimento. O sentimento que surge quando não consigo enfrentar alguém que exige que eu minta -por exemplo, um patrão- não é pura raiva, puro medo. É constrangimento. E o que é constrangimento? Vou me arriscar a dizer que é o que sinto diante do fato de ser incapaz. É esse constrangimento que aparece quando não posso atender a pedidos insistentes. Posso ficar irada, até grosseira, para disfarçar a impotência. Quando não posso exercer o livre-arbítrio, envergonho-me, constranjo-me, ressinto-me. Sempre que deparo com uma limitação, fico insegura, e gostaríamos que a incapacidade não transparecesse.
E eu, psicóloga que sou, e ainda socióloga, psicanalista, mãe, avó e sexagenária, venho aqui confessar que, muitas vezes, sou ridícula e disso me envergonho, isso me constrange. Encabulada, forço-me, aqui e agora, a encarar essa verdade. Eu também muitas vezes não consigo, não sei.
Ninguém está me culpando desses meus ridículos. Mas o perdão que os outros e eu mesma pudéssemos dar não aliviaria o constrangimento. Sentimentos muito ruins, negativos mesmo, podem receber a bênção da condenação ou da absolvição. A sociedade prevê pagamento por crimes, penitência por pecados. Que dirá por erros e enganos! Ninguém nos absolve de nossas vergonhas, remorsos e gafes.
Calo-me, pois. Que seja dos poetas essa tarefa. Bem fala Fernando Pessoa em seu "Poema em Linha Reta" sobre o ridículo de tropeçar nas etiquetas. Ainda bem que poetas existem para falar sobre a dor do ressentimento, sentimento horrível que nos faz culpar outros. Isso não passa de mera aparência, pois, na verdade, está na dor que surge de não ter podido triunfar sobre algum outro, que vemos malvado. O ressentimento fala sempre de derrota. E eu, que não sou poeta, fico só com o constrangimento de calar diante da estreiteza da minha linguagem. Não poetejo. Minha ciência e eu cá ficamos constritos e acanhados, porque nos vemos obrigados a nos esquivar de explicar tantos sentimentos, tão humanos.
Como diria Silvio Santos, eu aqui "peço ajuda" aos poetas.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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