São Paulo, quinta-feira, 19 de março de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Michael Kepp

Eu tenho mais de 20 anos!


[...] NO MEU ÚLTIMO ANIVERSÁRIO, UMA MOÇA ME FALOU: "O SENHOR ESTÁ INTEIRAÇO", UMA MANEIRA DELICADA DE DIZER BEM CONSERVADO

Para mim, envelhecer foi um processo marcado por perdas anatômicas que começaram no fim da adolescência. Eu havia celebrado perdas anteriores -dos dentes de leite e da gordurinha de bebê à virgindade- porque levaram a ganhos.
Tudo mudou aos 20 anos, quando comecei a perder cabelo. Bastava penteá-lo. Hoje em dia, minha calvície está pontuada de manchinhas e rodeada de cabelos grisalhos. Por isso, quando peço às pessoas que adivinhem minha idade (59), geralmente me dão mais.
Minha perda seguinte se deu aos 22 anos, quando uma vizinha me mostrou como ficar doidão, enfiando uma pinça com uma brasa de haxixe no nariz. Não me dei conta de que sua fumaça pungente e ardente poderia queimar também o meu olfato -até ser tarde demais. Desde então, não sinto mais cheiro nenhum, a não ser ao dirigir por pastos cobertos de esterco, quando meu olfato acorda de seu sono profundo.
Aos 52, dei adeus à minha vesícula cheia de pedras. Apesar de ser dispensável, sinto falta dela porque o órgão segrega bílis, um fluido digestivo. Agora, não tenho bílis suficiente para digerir refeições grandes ou pesadas, sofrendo com a fermentação que incha minha pança.
Minha mulher zomba do meu autoabuso ao me chamar de "meu grande gatoso" (gato idoso). Mas, aos 60 anos, ela vai me achar um "sexygenário?"
Aos 54, tive um acidente vascular cerebral, um derrame que me roubou de repente a visão periférica do olho esquerdo.
Quando acordei no dia seguinte, minha visão periférica havia voltado, provavelmente porque o vaso sanguíneo que nutre as células e nervos responsáveis por ela havia desentupido. Mas, para evitar outro AVC, tenho que tomar pílulas que afinam o sangue pelo resto da vida. Isso fez com que me lembrasse do que fazia meu pai se sentir "rodado": notar como, depois dos 65, suas orelhas e a minifarmácia que mantinha no banheiro começaram a crescer.
Um velho amigo lembrou que costumávamos falar principalmente de sexo e, agora, de saúde. Mas o que mais o lembrava de sua finitude era a morte de amigos. Para me poupar de perdas similares e me sentir mais jovem, eu me cerco de pessoas cujos caminhos que levam à terceira idade são mais longos do que o meu.
No meu último aniversário, uma moça me falou: "O senhor está inteiraço", uma maneira delicada de dizer "bem conservado". Meu pai sofreu com um desses lembretes no seu aniversário de 80 anos. Ao soar da meia-noite, ele me ligou e, como se tivesse subido o Everest, proclamou: "Mike, tenho 80 anos!". Dez minutos depois, quando a realidade bateu, ligou de novo e, na voz mais desanimada que se pode imaginar, gemeu: "Miiiike... tenho 80 anos".
Aos 81, um derrame o deixou em um estado de semicoma do qual nunca despertou inteiramente. Apesar de envelhecer irritar meu pai, forçando-o a testemunhar seu declínio, a morte não o incomodava. Ele só não queria estar presente quando viesse. E não estava.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

mkepp@terra.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Anna Veronica Mautner


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