São Paulo, terça-feira, 19 de abril de 2011
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

CORRIDA

RODOLFO LUCENA rodolfo.lucena@grupofolha.com.br

Alfa, beta, gama


A corrida nos leva a experiências que outros só encontram com a ajuda de remédios ou similares


TINHA CHOVIDO de manhã, mas não o suficiente para limpar o céu. Nuvens escuras largavam garoa de quando em quando, tornando mais frio o dia mais longo do ano no verão de São Petersburgo.
De calça comprida e gorro de lã, esperando a largada, observava os outros corredores. Alguns de capa de chuva, outros de camiseta, o mais estranho era um sujeito de mais de 60 anos, barba enorme, descalço e sem camisa, cheio de umas bolotas nas costas.
Olhar, olhar, olhar era um jeito de manter alertas os sentidos, para não tropeçar nem escorregar no asfalto molhado. Na ponte do rio Neva, um sujeito estendido no chão dava a medida do risco. Era atendido por mais dois ou três, e dava para ouvir a ambulância que chegava.
Então decolei. Do outro lado do rio, não havia burburinho de trânsito, e as nossas passadas pareceram entrar num mesmo ritmo, batendo no asfalto conforme o coração, deixando a mente fugir, vazia, como se o corredor fosse um viajante a observar o mundo com os pés.
Ainda hoje, quase oito anos depois, minhas tentativas cambotas de descrever aquele momento parecem descambar em poesia pouco inspirada. É melhor falar direto: entrei em alfa.
Estou me lixando para as explicações químicas, para show de endorfinas ou para as relações entre passadas ritmadas e meditação transcendental. Seja qual for a razão e o porquê, a corrida às vezes leva a experiências sensórias que outros só encontram com a ajuda de fármacos ou muletas correlatas.
Não se trata de uma epifania. Não saímos do processo mudados, mais sábios ou belos. É só um momento, minutos de descolamento das amarras todas que contraem nossos músculos em defesa contra as ameaças da vida.
Não é preciso atravessar o mundo para vivenciar tais episódios. Cá mesmo, na prosaica, movimentada e fedorenta avenida Sumaré, já me senti flutuar como se fosse um corredor de elite, rodando em velocidade inimaginável, que me roubou ar do cérebro, levando a uma tontura que deixa a gente até meio besta.
Com muito esforço, encontrei um resto de controle em algum canto da mente e mandei o corpo caminhar...
Por certo você já viveu instantes assim. A corrida nos leva a caminhos mágicos de cuja existência nem sequer desconfiamos. As pernas batucam ritmadas no asfalto, engolindo trilhas de chão batido ou quilômetros de areia na praia, mas os percursos reais estão dentro de nós.

RODOLFO LUCENA, 53, é editor do caderno Tec e do blog +Corrida (maiscorrida.folha.com.br), ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (Record)


Texto Anterior: O jogo do corpo
Próximo Texto: Da boca para dentro
Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.