São Paulo, quinta-feira, 19 de maio de 2005
Próximo Texto | Índice

Outras idéias

Dulce Critelli

Entre o que "não é mais" e o que "não é ainda"

Durante uma aula, um aluno meu ficou de pé sobre uma cadeira. Ele era loiro, e sua pele clara estava vermelha. Aflito, gesticulava e gritava exigindo que mudássemos de assunto. O ano era 1976. Estudávamos um texto de Eduardo Galeano do livro "As Veias Abertas da América Latina".
O tema da aula era o da época: a dominação político-econômica latino-americana, especialmente a brasileira. Vivíamos sob a ditadura militar, e esse era um assunto proibido. E perigoso. Agentes do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) infiltrados vigiavam tudo o que se dizia. As conseqüências iam do alerta à prisão, à tortura e à morte.


Tudo são emergências que nos fazem agir como se estivéssemos lúcidos, mas a consciência é um tanto entorpecida


O aluno sentia medo. Eu também. Assim como todos nós. Havia naquele momento, contudo, um espírito na PUC-SP que alimentava nossa resistência e a crença no direito natural de expressar o que pensávamos e de construir um país tal qual o sonhávamos.
Medo, indignação e esperança eram os sentimentos que dirigiam nosso entendimento e nossas ações. Percebo, agora, o quanto eu era dirigida e limitada pelo curto alcance dos meus 20 e poucos anos, desprovidos ainda do repertório das vivências e interpretações que só o passar dos anos propicia.
Mais do que da pouca idade, meus limites vinham da contingência a que todos estamos sujeitos quando participamos de um evento como atores. Não podemos ser seus espectadores. Não podemos tomar distância dos acontecimentos para ver seus rumos e traduzir seus significados nem o papel que exercemos no meio deles. Não os enxergamos na sua totalidade nem nas suas conseqüências.
Aportados no presente, convivemos com a ilusão de uma clareza que jamais se poderá ter. Tudo são emergências que nos fazem agir como se estivéssemos lúcidos, mas a consciência é um tanto entorpecida.
Experimentamos um estado um tanto febril, afinados apenas com as coisas imediatas, as tarefas, as crenças e os valores do momento. Que sentido podem ter os acontecimentos e a nossa própria vida se não percebemos nada além daquilo que se passa agora?
O tempo precisa passar e os acontecimentos precisam ficar para trás para que possamos ter uma compreensão mais adequada a seu respeito. Só um olhar sobre o passado pode nos levar a perguntar "o que foi mesmo que aconteceu?".
Como tantos filósofos já apontaram, o agora é apenas um ponto instalado entre o antes e o depois, entre o passado e o futuro, entre o que já "não é mais" e o que "não é ainda". O que já "não é mais" nunca foge, no entanto, dos nossos olhos. Ele mora nas ruínas, nos monumentos, nos objetos, registrado em livros, documentos, filmes. Assim como nos hábitos e costumes que seguimos sem saber por que nem como os adquirimos. O passado é uma tradição.
Já o lugar do futuro é a nossa fantasia. Só existe como um desenho projetado por nossos desejos, nossas esperanças e nossa imaginação. Ele é a fisionomia dos nossos sonhos. O futuro é um chamamento. Não pode ser compreendido nem analisado nem julgado. O futuro só pode ser desejado. E é a vontade de tornar o sonho uma realidade que "não é ainda" o que nos move. Quanto mais forte o sonho, mais forte a vontade e mais incisiva a ação.
Mas, entre o que foi e o que poderá ser, estamos nós mesmos, sempre e inevitavelmente, filtrando as ocorrências através das nossas possibilidades particulares. Cada um de nós é quem dá ao fluxo dos acontecimentos do passado e do futuro a sua costura e a sua realidade. O que já "não é mais" e o que "não é ainda" são medidos e delineados pelo nosso tempo pessoal, que começa com o nosso nascimento e termina com a nossa morte.

DULCE CRITELLI , professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
@ - dulcecritelli@existentia.com.br



Próximo Texto: Pergunte aqui
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.