São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 2000
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outras idéias
"Mas o senhor não mantinha backup das informações?", são as últimas palavras enigmáticas desse anônimo monstrinho em forma de gente do outro lado
Manual de sobrevivência, versão urbana

Fábio Steinberg

Estar perdido na selva dá calafrio na espinha de qualquer um. É que, inevitavelmente, associamos essa idéia a medo, isolamento, fome e frio. Mas a maioria de nós, pobres animais urbanos, conta com a probabilidade próxima de zero de passar por essa situação. Mais próximo da nossa realidade é enfrentar perigos até maiores -sejam eles físicos, emocionais ou psicológicos- neste mundinho cheio de horrores chamado civilização...
Calma, não pretendo impingir uma lengalenga pseudo-sociológica sobre a violência urbana. Longe disso! Gostaria, isto sim, de dar um mergulho sem compromisso no mar de pequenas situações cotidianas e discutir situações que conseguem nos atormentar mais até do que a possibilidade de se ver perdido na selva. Isolados, esses fatos parecem inofensivos. Juntos, conseguem desequilibrar o mais saudável dos seres.
Vou dar um exemplo dessa angústia de bolso que nos atinge de forma tão traiçoeira. Digamos que, depois de superar o seu preconceito em relação ao computador, você afinal capitula e vai de 8 a 800: apaixona-se por ele. Por conta disso, estabelece uma relação de confiança cega com a máquina. Passa a confiar mais no seu PC que na sua mulher. Lá entram segredos pessoais como relações bancárias, lista de endereços, e-mails, textos, apresentações, imposto de renda e tudo o mais. O seu amor ao computador chega a tal ponto que, numa demonstração de desprendimento, você deixa até de documentar em forma de papel valiosas informações pessoais.
Até que, sem aviso prévio, você é traído. De forma vil, na calada da noite, ocorre uma absurda e inexplicável greve computacional. Traduzindo, o seu amado aparelho se recusa a funcionar. Mesmo ou talvez devido à capenga ajuda técnica do fabricante -formalizada por meio de um menino de fraldas que mal consegue balbuciar um speech confuso ao telefone. Enquanto ele o orienta (ou desorienta) por meio de indecifráveis operações nos teclados, você se vê diante da ruína total. Eis que, num pavoroso acidente de percurso, vão-se misteriosamente 100% dos dados embutidos naquele caixote tecnológico metido à besta e cheio de bits e bites. "Mas o senhor não mantinha backup das informações?", são as últimas palavras enigmáticas desse anônimo monstrinho em forma de gente do outro lado da linha. Você tem vontade de esganá-lo, mas ele se foi. Agora, a você resta apenas olhar, atônito, para a burra e oca tela do monitor.
E, quem é você, sem lenço nem documento? -como rezava uma expressão do século passado. Diante da armadilha do destino, ei-lo frente a frente do seu momento da verdade -versão internet. É preciso desenterrar o seu instinto atávico mais básico, sem uso desde a Idade da Pedra. É hora de mostrar sua capacidade de sobreviver na selva contando apenas com a sua sabedoria portátil. Você consegue? Claro que sim! E, depois que a crise se for (acredite, um dia isso acontece!), você vai viver uma deliciosa sensação de auto-estima. Algo parecido com a experimentada pelos heróis mitológicos após vencer dragões -só que agora numa versão virtual, mas nem por isso menos perigosa e fatal...



FÁBIO STEINBERG é consultor em comunicação empresarial e responsável pelo site www.ficcoesreais.com.br



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