São Paulo, terça-feira, 20 de julho de 2010
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OUTRAS IDEIAS

MICHAEL KEPP - mkepp@terra.com.br

"Como você está se sentindo?"


Essa é uma pergunta às vezes retórica, com grande poder de manipulação e mil e uma utilidades


POR TRÁS da pergunta "como você está se sentindo?", escondem-se muitas motivações: preocupação com um amigo ou o cuidado do médico com um paciente em recuperação, por exemplo.
Mas a intenção pode ser evocar sentimentos bem mais fortes (autoconfiança, dor, culpa) e reações físicas correspondentes (um sorriso, uma lágrima, um palavrão).
É uma pergunta com grande poder de manipulação.
As pessoas podem fazê-la retoricamente, como acusação. Uma vez, trabalhando como barman, servi a um freguês doses excessivas de uísque. Ele acabou matando a mulher ao seu lado com três tiros, por ter zombado de suas cantadas.
Depois que o segurança o imobilizou, outro freguês lançou a pergunta sinistra: "E agora, como se sente?".
Repórteres de TV usam a pergunta para arrancar lágrimas de entrevistados, porque elas aumentam a audiência.
Trabalhei como tradutor para uma equipe de TV que fazia uma matéria sobre tráfico de bebês. O entrevistador me pediu que fizesse a pergunta a uma mulher cujo filho acabara de ser roubado de uma clínica e vendido a um casal estrangeiro.
Mas eu a adverti de que o repórter só queria que ela chorasse diante das câmeras: "Não precisa dividir sua dor com milhões de telespectadores".
Sua resposta veio sem uma lágrima. O repórter, frustrado, insistiu que eu repetisse a pergunta três vezes antes de desistir de uma resposta visual, mais sensacionalista.
Aprendi a evitar a pergunta quando cobri minha primeira corrida de Fórmula 1 no Brasil. O campeão Alain Prost sofrera uma derrota, e logo depois, no boxe, indaguei-lhe como se sentia.
Fui xingado e expulso de lá. Depois, meu editor me chamou a atenção: "Como acha que ele se sente?". Uma vez, um amigo revelou a várias pessoas um segredo que lhe contei. Quando o chamei de FDP, ele, terapeuta, disse: "Não diga o que pensa de mim; diga como se sente". "Sinto que você é um FDP", respondi, sarcástico.
Anos atrás, uma carioca usou a questão para me seduzir. Depois de longa paquera verbal, surgiu um clima.
Inseguro demais para dar o passo seguinte, ela tomou a iniciativa: "Estou me sentindo ótima por estar aqui com você. Como você está se sentindo?". Percebi, então, que também estava ótimo.
E foi esse empurrão que me fez continuar nosso "pas de deux". Com um sorriso de autoconfiança, propus: "Sinto que a gente deve ir para outro lugar". E nós fomos.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque- confissões e desabafos de um gringo brasileiro" (ed. Record).
www.michaelkepp.com.br


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