São Paulo, quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
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"Não sou um produto avariado"

Diagnosticada com câncer há quatro anos, Kris Carr, 35, reuniu em livro e documentário a história de pacientes jovens com a doença; à Folha, ela conta como luta contra o estigma de vítima e afirma que se sente sexy e cheia de vigor

DENISE MOTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

C ombinar em uma mesma frase os termos "tumor" e "alegria" lhe parece inadequado? De mau gosto? E o que dizer do coquetel "câncer" + "vida intensa" + "sexo"? Ingênuo? Hipócrita? Pois é especialmente com essa poção, à primeira vista inviável, que Kris Carr vem resistindo, desde 2003, a uma modalidade de câncer até o momento sem cura.
Apenas duas palavras bastaram para que a rodopiante agenda da atriz nova-iorquina desse lugar à vertigem de ter de encarar a morte como uma contingência demasiadamente palpável. "Hemangioendotelioma epitelióide", tumor maligno raro, de origem vascular, foi a senha para que a garota-propaganda da Budweiser -fiel aparição dos intervalos do "Super Bowl"- detivesse o relógio de uma vida sem tempo para se reinventar diante da possibilidade de um exíguo tempo de vida.
A saída para lidar com o desconcerto e o pavor foi se desfazer do apartamento em Nova York e embarcar em uma viagem à procura de respostas e armas para lidar com a nova realidade. Quatro anos e milhares de quilômetros depois, Kris, 35, reuniu um exército de pessoas que, como ela, não se deixam abater pela gravidade da doença. Das experiências que viu e vivenciou, surgiram o documentário "Crazy Sexy Cancer", que estreou no canal "The Learning Channel" em agosto e sai em DVD em março de 2008, e "Crazy Sexy Cancer Tips", livro lançado pelo novo selo Skirt! Books.
"Quando descobri que tinha câncer, que não havia tratamento e que estava no estágio quatro da doença, sabia que tinha de pensar em uma reação e criei isso tudo, usei a caneta e a câmera para superar o medo. Ir para a estrada foi fazer a 'jornada do herói', começar minha própria aventura e deixar tudo para trás. Conheci médicos, curandeiros, outras pessoas com câncer, meu marido! Houve uma história de amor no final (risos) e cresci no processo", disse ela à Folha, por telefone, de sua casa em Woodstock, NY, durante uma sexta-feira que amanheceu abaixo de 0º C.
A opção pela abordagem "sensual" de uma doença nada desejável é o que mais vem chamando atenção no trabalho da autora e não pára de lhe render mal-entendidos. "Escolhi o termo 'sexy' porque desejava que as pessoas soubessem que, apesar de algo muito sério haver acontecido na minha vida, ainda tenho senso de humor, vontade de fazer coisas, ainda sou boba... e sexy! É importante não se tornar uma vítima. Minhas tentativas vão nesse sentido. Alguns meios de comunicação me perguntam o que há de sexy em ter câncer. Não estou dizendo isso."

Pinceladas de glamour
"Crazy Sexy Cancer Tips" é uma espécie de manual prático para jovens mulheres que têm a doença, uma lacuna editorial que Kris detectou quando se viu obrigada a buscar livros sobre sua situação. Trata-se de uma coletânea de 77 dicas sobre temas tão variados quanto adotar uma dieta mais estimulante para o sistema imunológico, vida social ou sugestões de onde comprar roupas hospitalares com alguma personalidade.
"As pessoas têm tão pouca imaginação... Coloquei duas idéias que não combinam intencionalmente. Não há nada de sexy nessa doença. O que há são homens e mulheres que têm câncer e estão muito vivos, que se negam a ser definidos por isso. Não sou a doença, não sou um produto avariado em uma prateleira. O câncer não pode lhe tirar nada que você não deseje que seja tirado de você, incluindo a auto-estima", assevera de modo contundente, apesar de o tom calmo de suas afirmativas não sofrer nenhuma alteração, assim como o garboso caminhar de sua voluntariosa gata "russian blue", a quem observa enquanto fala. "Ela se chama Crystal, como a champanhe", explica, jocosa.
Decorar a vida com pinceladas de glamour e diversão é um dos passatempos da autora -e uma de suas principais estratégias para dissolver a aura de "coitadinho" que se costuma enxergar em pessoas com câncer. Em momentos de depressão, ouve "I´ll Survive" no volume máximo, dança alucinadamente, aplica generosas camadas de maquiagem com "glitter" sobre o rosto, reza ou parte para o shopping. "Sempre fui a clássica palhaça da família, adoro ultrapassar limites. Quando você ri, consegue colocar humanidade e esperança nisso tudo. Quando escrevo, gosto de usar o humor, porque é mais fácil ler sobre isso de um modo mais leve. E é mais fácil para mim estar bem, tentar lidar com o câncer com o que chamo de 'atitude de gratidão'."
Como a escritora, alguns dos personagens de suas obras -um empresário de rock, uma modelo, um VJ da MTV- levam uma vida tão normal quanto possível e em que os holofotes não se tornaram problema. O prefácio de "Crazy Sexy Cancer Tips" é assinado pela cantora Sheryl Crow, que, no ano passado, submeteu-se a uma cirurgia por conta de um câncer de mama.

Câncer casamenteiro
No próximo ano, Kris vai rodar os EUA em palestras e eventos de divulgação do filme e do livro. Outros dois volumes devem chegar às prateleiras em 2008 e 2009, os provisoriamente batizados "Crazy Sexy Journey: Lessons from the Road" e "Crazy Sexy Diet". Novos vídeos também estão em produção pela Red House Pictures, produtora que fundou com o marido, o editor Brian Fassett, com quem vive há quatro anos e que conheceu por conta das filmagens de seu documentário. "Digo que o câncer foi meu cupido", brinca ela.
"O humor e a coragem de Kris são incrivelmente infecciosos. O único defeito é que ela trabalha tanto, está tão entusiasmada em chegar a pessoas que precisam de ajuda e em construir uma comunidade que às vezes temo que não esteja praticando o que aconselha sobre se cuidar apropriadamente", afirma Brian, 41. "Tenho mais energia do que a maioria das pessoas porque mudei minha dieta e estilo de vida. Vejo que me tra- tam como um paciente e tenho que estar dizendo toda hora: "Não se preocupem, estou bem". Trabalho mais do que a média para superar o estigma.", justifica Kris.
O dia da atriz começa com um vistoso suco de vegetais e se desdobra em refeições à base de alimentos orgânicos, caminhadas, sessões de ioga e o desenvolvimento de seus projetos. Entre uma coisa e outra, para romper com tanta correção na dieta da neta de colombianos, são bem-vindas uma taça de vinho e uma xícara de café. "É minha fraqueza. Já sei que tem toxinas, mas o.k., não dá também para ficar tão louca!"
Outra parte de sua vida é composta por uma família formada por pai, mãe, irmão e irmã mais nova, da qual evita falar para mantê-los afastados da exposição ocasionada pelas empreitadas que encabeça e pela repercus-são de passagens suas por estúdios como os do "Oprah Winfrey Show" ou do "Evening News", da CBS. O câncer de Kris não regrediu, mas parou de crescer. E essa é uma das conquistas que a levam adiante. "Trata-se de uma jornada solitária, em que os outros não podem entrar. Você tem que cavar realmente fundo quando é confrontada com esse tipo de adversidade extrema. E, ao fazer isso, pode encontrar diamantes. O câncer não foi um presente, mas foi um catalisador, e mudei minha vida de maneiras que me deixam muito orgulhosa e feliz. Isso não quer dizer que não tenha dias ruins. Eu choro, tenho raiva e depois saio dessa, porque isso é importante. Gosto de pensar em mim como uma guerreira espiritual."


"Crazy Sexy Cancer Tips" Editora: The Globe Pequot Press; Quanto: US$ 12.21; www.amazon.com

"Crazy Sexy Cancer" (DVD): à venda nos EUA a partir de março de 2008

Na internet: http://www.crazysexycancer.com
http://crazysexycancer.blogspot.com



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