São Paulo, quinta-feira, 21 de junho de 2001 |
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Atitude filosófica dá qualidade de vida
O cidadão moderno quer mais do que explicações de como
tudo acontece e sai em busca do porquê dos fatos do dia-a-dia
DANIELA FALCÃO - EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO
O estudante Rafael Rogara, 17, a dona de brechó Denise Pini, 50, e
o médico pernambucano Mozart Cabral, 42, vivem em mundos
completamente diferentes. Mas os três reservam pelo menos uma
noite por mês para tentar entender o que está por trás de sentimentos
tão díspares quanto coragem, desejo e medo da morte. Com a ajuda
de filósofos e historiadores, buscam decifrar o sentido dos acontecimentos cotidianos para viver melhor. Depois de ficar por mais de três séculos relegada ao papel de figurante na vida cotidiana do homem
comum, a filosofia volta a ser discutida informalmente em lugares públicos e até consultórios, graças a um
grupo de perfil tão variado quanto o
de Denise, Rafael e Mozart.
"Há um "revival" da reflexão filosófica. Entre os séculos 15 e 18, ela sofreu
um exílio em função do mundo prático que a física trouxe. Mas a supervalorização deste mundo gerou nas pessoas comuns um vazio existencial
que só a filosofia pode ajudar a preencher porque as explicações técnico-científicas não são mais suficientes",
afirma o filósofo e colunista da Folha
Mario Sergio Cortella.
A parte mais visível deste "revival"
são os cafés filosóficos, invenção parisiense do início da década passada
que pipocou pelos cinco continentes
a partir de 95 e floresceu no Brasil nos
últimos quatro anos (leia na pág. 10).
Abertos a pessoas de todas as idades que não precisam ter formação filosófica, os cerca de 230 cafés espalhados pelo mundo (mais da metade
deles na França) viraram um espaço
para debater questões cotidianas à
luz da filosofia, como faziam os gregos há mais de 2.000 anos.
"As reuniões nos cafés são exercícios da cidadania. A reflexão filosófica sobre o que está por trás de acontecimentos diários que parecem banais
desestabiliza preconceitos e aumenta
a capacidade dos participantes de
avaliar adequadamente os acontecimentos", diz a professora de filosofia
da USP Olgária Matos.
Apesar de nascida em praça pública, a filosofia afastou-se de suas origens e ficou restrita a iniciados, confinada aos muros da academia. "A filosofia era diálogo e discussão a céu
aberto, em praça pública, sobre a justa vida e o bem-viver. Era o exercício
da busca da harmonia consigo mesmo e da concórdia na cidade", afirma
Matos, pioneira nas iniciativas pela
popularização da filosofia no Brasil.
Outra face deste "revival" são as
tentativas de usar a filosofia para curar depressão, ansiedade e outros
problemas emocionais até hoje tratados exclusivamente por psicanalistas
e psiquiatras.
Chamada no Brasil de filosofia clínica, a prática ainda é vista com desconfiança até por alguns filósofos,
mas não pára de crescer.
O filósofo gaúcho Lúcio Packter
fundou há sete anos, em Porto Alegre,
o primeiro instituto que treina filósofos para a prática clínica. Hoje, há filiais em mais 12 Estados. Só em São
Paulo, 80 filósofos já passaram pelo
curso de Packter. "Passo a maior parte do meu tempo viajando de norte a
sul do país para dar palestras sobre
uso da filosofia clínica", diz Packter,
que, na semana passada, conversou
com a reportagem, por telefone, do
Maranhão, Piauí e Ceará.
Apesar de não aceitarem como
clientes portadores de distúrbios
comportamentais graves, os filósofos
clínicos são criticados pela falta de habilitação para diagnosticar graus de
distúrbio.
Polêmica à parte, os motivos do
crescimento da filosofia clínica são os
mesmos que explicam a multiplicação
dos cafés filôs: insatisfação e inquietude crescentes geradas pela dificuldade
em compreender o sentido de acontecimentos cotidianos.
"A abordagem estritamente racional e pragmática não dá conta de responder a uma série de questões. O
mundo tecno-científico lida com o como as coisas acontecem, enquanto a
filosofia e a religião lidam com o porquê", diz Cortella.
O fenômeno que provocou o "revival" da filosofia é o mesmo que levou
ao boom da auto-ajuda e da nova religiosidade e que transformou o livro
"O Mundo de Sofia", do norueguês
Jostein Gaarder, em um dos maiores
sucessos editorias de todos os tempos.
"Em uma época em que a felicidade
é sinônimo de consumo de bens materiais, em que a política encontra-se separada da economia e que tudo passa
por uma decisão técnica, a noção de
sociedade civil se apaga. E a filosofia
aparece para restaurar o sentimento
de cidadania", diz Matos.
Para Heraldo Tovani, organizador
do projeto Filosofia no Cotidiano, da
Prefeitura de Santo André (Grande
São Paulo), a filosofia está se popularizando porque traz "algumas luzes de
reflexão" ao mar de "cotidiano nonsense". "Não falta só ética, falta estética. Precisa-se, neste momento, de filosofia no cotidiano e de muito cotidiano na filosofia", diz Tovani.
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