São Paulo, terça-feira, 21 de junho de 2011
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ROSELY SAYÃO

ESPELHO NOSSO


Poucas crianças aprendem a dividir brinquedos, conviver com diferenças e tolerar defeitos


Faz um tempo que observo a movimentação nos horários de entrada e saída das escolas. Fora os carros, que atrapalham o trânsito em todo o entorno, há crianças e adolescentes que saem e entram, sozinhos ou com seus pais.
É uma confusão geral: correria, gritaria, malas enormes que são arrastadas sem o menor cuidado e que produzem muito barulho, buzinas estridentes etc. Sempre fico impressionada com a indiferença das pessoas envolvidas nessas situações frente a esse caos que vivenciam.
Não é muito diferente o cenário que se observa durante o período do recreio, na maioria das escolas. As crianças parecem ficar desnorteadas com tanta liberdade: correm e gritam sem direção e, invariavelmente, também sem contexto.
O corre-corre e os gritos não fazem parte de alguma brincadeira que exige tais manifestações.
Um dia desses, vi um garoto de uns 10 anos, mais ou menos, correndo em direção a alguém quando saía da escola. Talvez o pai ou um colega, não pude identificar. Acontece que, em seu trajeto, ele esbarrou com força em outro menino um pouco menor que ele que, pela força do empurrão, foi ao chão.
Você imagina o que aconteceu logo em seguida, não é, leitor? Uma briga entre os dois meninos que, para ser apartada, precisou de dois adultos.
O garoto que corria não via mais nada além da meta que ele queria alcançar. Tudo o que estava em seu caminho, ele ignorou: chegou até mesmo a pisar em uma mala estacionada, o que provocou um certo desequilíbrio em sua jornada. Ele conseguiu contornar esse obstáculo, mas ficou no próximo, que era o outro aluno.
Dias depois, ao ler o jornal, vi uma notícia que me fez lembrar desse caso.
O serviço telefônico da Polícia Militar de São Paulo registra, em média, 70 ligações por dia para comunicar desentendimentos ocorridos no trânsito.
Pelo menos 20 desses conflitos acabam com violência física entre os motoristas -todo santo dia. A relação entre os casos é inevitável. Nesse mundo em que a vida é vivida com velocidade máxima e em que o outro quase sempre é um estorvo ou uma ameaça, os adultos estão dispostos a brigar por qualquer coisa a todo o momento.
O trânsito é uma oportunidade excelente para isso, já que é caótico e que consome um tempo precioso da vida das pessoas.
Por que as crianças agiriam de modo diferente, se observam atentamente tudo o que acontece no mundo adulto? A criança, de uma maneira geral, só aceita que outra seja seu par se essa estiver a serviço de seus interesses: a brincadeira que quer brincar, o passeio que quer dar, a lição que precisa fazer etc. Fora dessas situações, outra criança a atrapalha, a ameaça.
Ter de compartilhar brinquedos, conviver com a diferença e tolerar defeitos não são atos comuns entre as crianças. Poucas delas aprendem essas lições, seja na escola que frequentam seja em casa, com pais e parentes.
O curioso é que, ao observarmos a vida dos mais novos, logo percebemos que: eles brigam em demasia; exageram nas reações quando se defrontam com situações que lhes trazem dificuldades, decepções ou frustrações; não sabem administrar tampouco resolver os conflitos que a convivência provoca.
Entretanto, não temos a mesma facilidade para constatar que estamos fazendo o mesmo em nossas vidas e que, portanto, os mais novos têm aprendido conosco a agir como agem.
Se conseguirmos retirar a venda de nossos olhos e enxergar tudo o que temos ensinado a eles, talvez fique menos árdua a tarefa educativa, em família ou na escola.
Só assim teremos mais compaixão e tolerância frente aos erros que eles cometem já que, afinal, são provocados por nós mesmos.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)



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