São Paulo, quinta-feira, 21 de setembro de 2006
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

S.O.S Família

Celebração e rotina

Anna Veronica Mautner

Desde que o mundo é mundo, a humanidade se organiza em torno da necessária rotina, entrecortada por datas especiais. Sabemos que precisamos de dias diferentes para descanso e comemoração.
Festejar juntos funciona como confirmação de quem somos. A humanidade evolui, as formas de comemorar mudam, mas a necessidade da confirmação de que estamos aqui não desaparece.
No Sete de Setembro, por exemplo, as solenidades cívicas confirmam a existência do Brasil tal qual é hoje, livre e soberano. Na Igreja Católica, o sacramento da crisma confirma o batizado. Os aniversários confirmam o nascimento. As vitórias esportivas e artísticas, pelo orgulho que sentimos, confirmam a nossa nacionalidade.
Cada família também tem seus rituais, como o jeito e a hora de dar presente ou certas canções que todos entoam juntos. A importância dos rituais é sempre trazer à tona nossa própria história -individual, grupal ou nacional.
Algumas escolas também procuram manter sua história viva. Lembro-me dos preparativos anuais que antecediam -e imagino que continuam a anteceder- o Dia do Mackenzie, cuja festa integrava todos os cursos, do primário às faculdades, num mesmo campo de esporte, com o mesmo uniforme, cantando o mesmo hino, fazendo ginástica coletiva e jogos. Não faz muito tempo, encontrando-me por acaso com outros três ex-mackenzistas, demos muita risada tentando lembrar as palavras do nosso velho hino. Ninguém tinha esquecido, assim como lembrávamos as músicas religiosas que entoávamos no culto diário. As escolas católicas têm as suas próprias formas de manter vivo seu passado.
Basta observar um show de rock ou um estádio para perceber novos ritos nascendo, para criar as mesmas emoções. O que lamento é perceber que, com medo de serem caretas ou retrógrados, os pais e educadores vão largando solenidades que marcaram as suas próprias vidas. Não sou ingênua. Sei que o grito uníssono da multidão pode levar tanto ao bem quanto ao mal. Mesmo pacifistas, nós nos beneficiamos da emoção que nasce da voz coletiva. Como se diz, o martelo que faz o aço também quebra o vidro, mas nem por isso jogamos os martelos fora. A diluição da individualidade nesse tipo de cerimônia é importante porque alimenta uma força que existe no mundo interior de cada um.
A que vem tudo isso? Vi no Sete de Setembro, na televisão, um carro aberto com o casal presidencial acenando ao povo.
Só que o carro andava no meio da cavalaria. Perderam força o aceno e o ressoar do passo dos cavalos. Não discuto se, no tempo dos foguetes, cabe manter a cavalaria. O que não cabe é esculhambar o aceno e o som dos cascos. Assim, ambos perderam o sentido. Respeitar não é obrigatoriamente ato de submissão. Bons argumentos podem eliminar ritos, mas destroçá-lo sem mais nem menos é apenas irracional.
Pediria aos adultos -pais, professores e educadores- que não privassem as crianças daqueles momentos de consagração que tiveram e que podem ser importantes na confirmação da identidade. Ser solitário na multidão é suficientemente freqüente na nossa vida para nos manter em níveis altos de insegurança.
Não é bom eliminar aqueles momentos em que, juntos, levantamos os braços e saudamos. Nesse momento, não estamos sozinhos. O show, o concerto, a torcida e a festa de aniversário são a hora diferente e o bálsamo para a solidão. Instrumentalizemos os jovens. Vamos ensiná-los a comemorar.
Comemorando.

[...] A importância dos rituais é sempre trazer à tona nossa própria história -individual, grupal ou nacional


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br

A colunista Rosely Sayão volta a escrever em 28/9


Texto Anterior: Importante
Próximo Texto: Jogos de mesa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.