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S.O.S Família
Celebração e rotina
Anna Veronica Mautner
Desde que o mundo é
mundo, a humanidade se organiza em
torno da necessária
rotina, entrecortada por datas
especiais. Sabemos que precisamos de dias diferentes para
descanso e comemoração.
Festejar juntos funciona como confirmação de quem somos. A humanidade evolui, as
formas de comemorar mudam,
mas a necessidade da confirmação de que estamos aqui não
desaparece.
No Sete de Setembro, por
exemplo, as solenidades cívicas
confirmam a existência do Brasil tal qual é hoje, livre e soberano. Na Igreja Católica, o sacramento da crisma confirma o
batizado. Os aniversários confirmam o nascimento. As vitórias esportivas e artísticas, pelo
orgulho que sentimos, confirmam a nossa nacionalidade.
Cada família também tem
seus rituais, como o jeito e a hora de dar presente ou certas
canções que todos entoam juntos. A importância dos rituais é
sempre trazer à tona nossa própria história -individual, grupal ou nacional.
Algumas escolas também
procuram manter sua história
viva. Lembro-me dos preparativos anuais que antecediam
-e imagino que continuam a
anteceder- o Dia do Mackenzie, cuja festa integrava todos
os cursos, do primário às faculdades, num mesmo campo de
esporte, com o mesmo uniforme, cantando o mesmo hino,
fazendo ginástica coletiva e jogos. Não faz muito tempo, encontrando-me por acaso com
outros três ex-mackenzistas,
demos muita risada tentando
lembrar as palavras do nosso
velho hino. Ninguém tinha esquecido, assim como lembrávamos as músicas religiosas que
entoávamos no culto diário. As
escolas católicas têm as suas
próprias formas de manter vivo
seu passado.
Basta observar um show de
rock ou um estádio para perceber novos ritos nascendo, para
criar as mesmas emoções. O
que lamento é perceber que,
com medo de serem caretas ou
retrógrados, os pais e educadores vão largando solenidades
que marcaram as suas próprias
vidas. Não sou ingênua. Sei que
o grito uníssono da multidão
pode levar tanto ao bem quanto
ao mal. Mesmo pacifistas, nós
nos beneficiamos da emoção
que nasce da voz coletiva. Como se diz, o martelo que faz o
aço também quebra o vidro,
mas nem por isso jogamos os
martelos fora. A diluição da individualidade nesse tipo de cerimônia é importante porque
alimenta uma força que existe
no mundo interior de cada um.
A que vem tudo isso? Vi no
Sete de Setembro, na televisão,
um carro aberto com o casal
presidencial acenando ao povo.
Só que o carro andava no meio
da cavalaria. Perderam força o
aceno e o ressoar do passo dos
cavalos. Não discuto se, no tempo dos foguetes, cabe manter a
cavalaria. O que não cabe é esculhambar o aceno e o som dos
cascos. Assim, ambos perderam o sentido. Respeitar não é
obrigatoriamente ato de submissão. Bons argumentos podem eliminar ritos, mas destroçá-lo sem mais nem menos é
apenas irracional.
Pediria aos adultos -pais,
professores e educadores- que
não privassem as crianças daqueles momentos de consagração que tiveram e que podem
ser importantes na confirmação da identidade. Ser solitário
na multidão é suficientemente
freqüente na nossa vida para
nos manter em níveis altos de
insegurança.
Não é bom eliminar aqueles
momentos em que, juntos, levantamos os braços e saudamos. Nesse momento, não estamos sozinhos. O show, o concerto, a torcida e a festa de aniversário são a hora diferente e o
bálsamo para a solidão. Instrumentalizemos os jovens. Vamos ensiná-los a comemorar.
Comemorando.
[...] A importância dos
rituais é sempre trazer à tona nossa própria história -individual, grupal ou nacional
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br
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