São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004
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Na medida exata

Pediatras e pesquisadores afirmam que remédios em excesso trazem mais males que benefícios

Marcos Dávila
da reportagem local

A criança mexia na cabeça sem parar, colocava a mão perto do ouvido com muita freqüência e não conseguia dormir direito. Diante do quadro, a mãe não teve dúvidas: "É otite". Foi buscar um antiinflamatório na sua farmácia caseira, no armário do banheiro, e aplicou o remédio no ouvido do filho -na época com um ano de idade. Mesmo com três aplicações diárias, a criança não melhorava. Depois de dois dias, ao fazer um cafuné na criança, a mãe descobriu o que realmente a incomodava: "Era piolho".
O erro cometido pela publicitária gaúcha Sandra Maria Madalosso Rodrigues, 37, com seu filho Joel, 2, não foi o único. "Vou ser franca, esses enganos acontecem de vez em quando. Penso que é uma coisa e começo a tratar, mas, quando chego no pediatra, é outra", diz Sandra, que anda sempre com remédios na bolsa. "Se o nariz começa a escorrer, dou Naldecon [analgésico e antitérmico], que é o que normalmente as mães dão; se está enjoado, dou Tylenol [analgésico e antitérmico]. Mas todos esses são remédios fracos."
Fortes ou fracos, é preciso ter sempre em mente que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Ou, como prefere a médica Lúcia Ferro Bricks, "a diferença está em quem receita o medicamento". "O uso indevido do paracetamol [princípio ativo do Tylenol, na lista dos remédios "fracos" da publicitária], por exemplo, pode causar lesões no fígado e até a morte", afirma.
Pediatra do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (SP), Lúcia escreveu um estudo recente com o objetivo de rever a funcionalidade dos remédios dados a crianças para infecções respiratórias.
Na maioria dos países, segundo a pediatra, os três grupos de medicamentos mais utilizados em crianças -antibióticos, analgésicos/antitérmicos e medicamentos com ação no aparelho respiratório- são indicados para o tratamento dos problemas respiratórios. "Muitos desses remédios são utilizados de forma inadequada, além de problemas como erros na dose, intervalo de administração e tempo de uso", afirma a pediatra em seu estudo.
Com o fácil acesso aos remédios, o forte apelo da publicidade e a recorrente alegação da "falta de tempo" para levar os filhos ao médico, o uso indiscriminado de medicamentos em crianças tem se tornado um hábito. E, diferentemente do que muita gente pensa, mesmo os remédios que podem ser comprados sem prescrição médica podem causar danos irreversíveis à saúde da criança -se usados de forma incorreta ou sem necessidade.
Para a presidente do Departamento de Segurança da Criança e do Adolescente, da Sociedade Brasileira de Pediatria, Renata Waksman, os hábitos culturais, a educação, a falta de legislação e, principalmente, o fácil acesso às farmácias contribuem para o alto nível de automedicação no país. Mas Renata levanta outro problema: "Existe abuso dos dois lados. Há os pais que não consultam os médicos e os médicos despreparados, que precisam se atualizar. Muitas vezes, quem leva a informação para um colega que está longe é o propagandista do laboratório, com um estudo e meia dúzia de amostras grátis debaixo do braço", afirma Waksman.
Esse não é um mal que atinge somente países em desenvolvimento. No início deste mês, a Academia Nacional de Farmácia da França divulgou uma pesquisa que evidencia uma freqüência alarmante nos erros de prescrição e de administração de medicamentos em pediatria. O estudo, coordenado por Françoise Brion, chefe do serviço de farmácia no hospital Robert-Debré (em Paris), foi realizado em 14 hospitais com 2.000 crianças menores de seis anos, hospitalizadas em 28 serviços pediátricos.
Entre outros dados, a pesquisa revelou que, em mais de um terço das aplicações de medicamentos injetáveis, a posologia e o modo de administração não correspondiam às recomendações da bula. Já os comprimidos, em cerca da metade dos casos, foram prescritos sem que a autorização de comercialização incluísse sua utilização em crianças com menos de seis anos -para aproximá-los da dosagem ideal, os comprimidos eram cortados ao meio ou esmigalhados de forma caseira, na maior parte das vezes.
"O médico prescreve remédios sem autorização para uso infantil, com cálculo exagerado da posologia e sem detalhar o protocolo a ser seguido. A enfermeira administra os medicamentos cuja dosagem e posologia são inadequadas, o que acaba requerendo adaptações grosseiras para cada paciente", afirma Françoise Brion, que acredita que a indústria farmacêutica precisa "aumentar os experimentos clínicos para que novos medicamentos de uso pediátrico sejam autorizados".
"Tenho pavor de pronto-socorro porque tive uma experiência que não foi boa. Levei minha filha lá num fim de semana e eles deram uma inalação de adrenalina, pois pensaram que ela tinha bronquite. Ela piorou. Na segunda, a pediatra disse que era laringite", afirma a artesã e dona-de-casa Eunice Florentino da Costa, 40, cuja filha, Camila, tem cinco anos.
Para evitar os prontos-socorros, Eunice resolveu ela mesma medicar sua filha em outra ocasião que a criança começou a tossir. "Usei um antialérgico que eu já tinha em casa, pois a médica havia receitado mais ou menos um mês atrás. Dei por três dias e ela não melhorou. Aí, fui ao médico e era sinusite. Teve de tomar antibiótico", diz.

FARMÁCIA CASEIRA
Ter um estoque de remédios em casa e à mão não é prática incomum. "A mãe, na maioria das vezes, toma como base prescrições anteriores feitas por um médico. Ter uma farmácia caseira favorece muito a automedicação", afirma o farmacêutico Paulo Sérgio Dourado Arraes, professor da Universidade Federal do Ceará, que coordenou uma pesquisa entre outubro de 2002 e janeiro de 2003 com o objetivo de conhecer os padrões de consumo de medicamentos e eventos adversos a medicamentos na população residente no município de Fortaleza. Segundo Arraes, a automedicação atingiu 14% da população de crianças com quatro ou menos anos.
Outro resultado do estudo aponta para as deficiências no atendimento médico e farmacêutico, principalmente no que diz respeito à obtenção de informações sobre o histórico do paciente. Na maioria das vezes, os profissionais não perguntam se o paciente tem alergia ao medicamento que será prescrito ou se ele está tomando algum outro remédio. "Pouco informam também sobre as reações adversas e interações com outros produtos", diz Arraes, que se preocupa em chamar a atenção da população para os Centros de Informação de Medicamentos existentes no Brasil.
A dona-de-casa Renata Stefani Fonseca, 29, também costuma ter "todos os remédios para febre e dor de cabeça" em uma gaveta no banheiro, para resolver os problemas "menos sérios" dos filhos: Tiago, 4, e Pedro, 2.
"Eu vou testando os remédios. No fim de semana, o Pedro estava ruim, com tosse. Dei um remédio que não funcionou, mas no segundo ele ficou bom", afirma a dona-de-casa, que também não tem boas recordações do atendimento recebido em prontos-socorros. "Levei meu filho uma vez e fizeram inalação. Quando fui ao pediatra, ele disse que não precisava."

EFEITOS ADVERSOS
De acordo com a pediatra Lúcia Ferro Bricks, a tosse é muito comum nas crianças e, na maioria das vezes, passa sem que seja preciso usar medicamento algum. "Temos uma cultura de resolver qualquer coisa com remédios", afirma Lúcia, que acredita que a ampla aceitação dos medicamentos de venda livre para tratamento dos sintomas do resfriado comum se deve ao desconhecimento e à propaganda dos laboratórios.
Para o pediatra Bernardo Ejzenberg, coordenador de pesquisas da Divisão de Pediatria do Hospital Universitário da USP, os efeitos adversos não são apenas os causados pelas substâncias nocivas, mas, no caso dos antibióticos, por exemplo, o uso abusivo pode "selecionar" as bactérias mais resistentes no organismo e levar a criança a depender sempre de remédios mais fortes. "Por outro lado, não podemos demonizar o antibiótico. Conheço crianças que deixaram de tomar antibiótico e morreram, pois a otite evoluiu para uma meningite", afirma o pediatra, que acredita faltar atualmente "soluções estruturais": "Se a criança está sempre resfriada, mas vive numa casa gelada, não adianta entupi-la de remédio, tem de mudar de casa", exemplifica.
Nenhum remédio deve ser ingerido sem orientação médica. Para tudo tem de se calcular o risco e o benefício. Deve-se tomar cuidado também com aqueles antigos e "consagrados".
"O ácido acetilsalicílico, por exemplo, foi utilizado por muito tempo. Mas pesquisas indicam que pode causar muita irritabilidade gástrica, sangramento oculto pelas fezes e até úlcera. O uso para crianças foi proibido nos EUA nos anos 70", afirma a pediatra Lúcia Bricks. Ejzenberg alerta também para a síndrome de Reyes (doença que atinge uma em um milhão de crianças), que pode estar associada ao uso do ácido acetilsalicílico. "A criança pode entrar em coma ou até mesmo morrer", diz.
Mesmo assim, em estudo realizado nos anos 90 pela UFP (Universidade Federal de Pelotas), no Rio Grande do Sul, o ácido acetilsalicílico aparece como o remédio mais utilizado em crianças de apenas três meses de idade. Foi constatado que 69% dos bebês já haviam sido medicados pelo menos uma vez com essa substância. "São números bastante elevados. Quando você acostuma a criança a tomar muitos remédios desde cedo, ela provavelmente vai recorrer aos remédios para qualquer coisa na vida adulta", afirma a farmacêutica Andréa Dâmaso Bertoldi, do departamento de epidemiologia da UFP, que está trabalhando em uma pesquisa semelhante, cujos resultados devem ser anunciados em 2005.
Nos estudos da UFP, foi identificado até o abuso de vitaminas e sais minerais, dessa vez em crianças de três a quatro anos. Na maioria das vezes em que são utilizados os suplementos alimentares, uma boa alimentação resolveria. "Quando os pais me pedem para receitar uma vitamina, eu falo: junte várias frutas e faça um bom suco para criança", defende a pediatra Lúcia Ferro Bricks.


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