São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 2006
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Neurociência - Suzana Herculano-Houzel

Uma coisa de cada vez

Crianças parecem ganhar de 10 a 0 dos adultos em termos de velocidade para aprender coisas novas. Diga-lhes uma palavra nova uma única vez e ela entra permanentemente para o vocabulário infantil. Ensine às crianças uma língua estrangeira e elas a falarão sem sotaque. Coloque-as ao piano e elas aprenderão, com mais facilidade do que qualquer adulto, a dedilhar uma melodia. Ou não?
Para alguns estudiosos do aprendizado motor, é um engano considerar a capacidade infantil de aprendizado universalmente superior à dos adultos. Em vez de ter um cérebro indiscriminadamente mais "lento" para o aprendizado, a desvantagem dos adultos pode estar em um efeito bem específico: interferência entre tarefas. Se tentarem aprender uma, e apenas uma, tarefa motora, como um dedilhado ao piano, adultos e crianças mostrarão a mesma velocidade de melhora -e os adultos, em geral, terão melhor desempenho. Se, no entanto, tentarem aprender cinco dedilhados diferentes ao mesmo tempo, ou apenas dois, as crianças aprenderão todos igualmente bem -mas os adultos terão dificuldade para se lembrar até do primeiro dedilhado. Isso é interferência entre tarefas: a tentativa de um segundo aprendizado simultâneo perturba o primeiro, e o adulto acaba não aprendendo nenhum dos dedilhados, não porque seja intrinsecamente mais lento, e sim porque seu aprendizado é sujeito a interferências.
Faz sentido que o aprendizado das crianças seja imune a interferências entre tarefas. O mundo traz muito mais novidades para o cérebro de uma criança do que para o de um adulto, e essas são registradas por um cérebro infantil abundante em matéria-prima como um caderno de muitas páginas, capaz, portanto, de fazer anotações em várias frentes ao mesmo tempo. Finda a adolescência, a matéria-prima ainda está lá -mas o caderno de entrada, agora com uma página, somente anota uma novidade de cada vez.
Isso não quer dizer que o adulto não consegue mais aprender nem que tem mais dificuldade do que as crianças. Pode precisar ir aos poucos, mas o cérebro adulto também chega lá. Não aprendemos mais cinco músicas novas ao mesmo tempo, mas dêem-nos algumas horas para estudar uma só e o resultado pode ser um concerto que criança nenhuma tocará. Temos algo valioso em nosso cérebro que as crianças estão apenas adquirindo: a bagagem de vários anos de vida. E continuamos acumulando mais, talvez até tão bem quanto as crianças -desde que seja uma coisa de cada vez.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Sexo, Drogas, Rock'n'Roll & Chocolate" e de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) suzanahh folhasp.com.br


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