|
Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros
OUTRAS IDEIAS
ANNA VERONICA MAUTNER - amautner@uol.com.br
Palavras na fila da aposentadoria
'Astúcia' virou esperteza, 'afoiteza' agora é agilidade e equilíbrio substituti 'temperança'
POR QUE palavras caem em
desuso? Listarei umas ainda
conhecidas, mas pouco úteis
na linguagem corriqueira.
Bem poucos são os verbos
que caem no esquecimento, e
é mais lento o processo do seu
desaparecimento. Com advérbios acontece o mesmo.
Já os substantivos aumentam na medida da criação de
novas "coisas": materiais,
máquinas e formas de energia, para não falar das tecnologias. Os adjetivos também
se transformam e somem.
O que mais me chama
atenção são as palavras relativas a comportamentos, sentimentos, reações emocionais, que, assim como aparecem, desaparecem.
A primeira que me ocorre
tem a ver com aparência, moda, tecido, modelo: caimento.
Para haver um bom caimento, é preciso que o modelo seja adaptado ao tecido, o corte
seja bem feito, a costura, caprichada, e tudo o mais que
vai com a elegância.
"Caimento" some porque
a produção industrial impede, em parte, que se leve em
conta delicadezas como essa. Uma das soluções que se
achou foi a moda da roupa
justa, quase uma segunda
pele. E pele, de preferência,
não tem caimento.
Daria para fazer um romance só sobre essa palavra.
Mas basta dizer que o mundo
mudou e não tem mais lugar
para a ideia de "caimento". A
elegância enveredou por outros caminhos.
E quem conhece criança
"insolente" ou "petulante"?
Existem, só que nem merecem mais adjetivação. Fica
por conta de serem crianças,
portanto, sem bons modos.
"Recato", "compostura",
"pudor" falam sobre adequação. E a "indolência", onde
foi parar? Indolente, hoje, a
gente chama de apático.
"Astúcia" sumiu, sobrou a
esperteza. "Afoiteza" tomou
ares de agilidade. O que se
usa mais, afinal: "arrogância" ou "empáfia"? Acho que
a "empáfia" está morrendo.
Antes, há não mais de dez
anos, o arrogante, o metido
era "convencido". Charme e
"lascívia" se misturavam ao
que hoje é chamado de sedução. E o equilíbrio substituiu
a "temperança".
A cada vocábulo que morre e outro que nasce corresponde um jeito diferente de
viver e avaliar o outro.
Cada um de nós é capaz de
aumentar essa lista. O importante é não deixar passar essas mudanças sem perceber
o que ocorre. Acho que em 50
anos algumas dessas palavras serão totalmente desconhecidas, mas não estarei
aqui para confirmar.
Gosto de acompanhar essas mudanças, sem fazer
muita teoria, só um pouquinho. Mas sem deixar passar
que o dicionário do nosso cotidiano se movimenta.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo, é autora de "Cotidiano nas
Entrelinhas" (ed. Ágora)
Próximo Texto: Comente, pergunte Índice | Comunicar Erros
|