|
Texto Anterior | Índice | Comunicar Erros
ROSELY SAYÃO
Trote e habilidades sociais
É o processo de socialização que vai determinar o desenvolvimento cognitivo da criança
NESTA ÉPOCA DO ANO, não
há como não reparar nos trotes universitários. Em toda esquina com semáforo próxima
a uma faculdade vamos encontrar, invariavelmente,
grupos de calouros pintados.
Eles pedem dinheiro aos
motoristas, acompanhados
de perto pelos olhares dos
alunos veteranos.
Alguns desses calouros
participam alegremente da
brincadeira, mas outros não.
É claro que não são raras as
vezes em que podemos perceber que há alguns excessos
da parte dos veteranos.
Pintar um ou uma colega
pode até ser, de fato, um rito
de passagem. Entretanto, atirar ovos, jogar pó de café, mel
e farinha nos cabelos das garotas, derrubar potes de tinta
no rosto dos rapazes -inclusive nos olhos-, passar a tesoura nas roupas deles não
podem ser considerados outra coisa que não abuso.
Por isso, sempre fico envergonhada e constrangida
quando cruzo com esses grupos nas esquinas da cidade.
Na semana passada, parei
em um cruzamento e um calouro se aproximou de meu
carro. Seu rosto estava tão alterado que eu decidi trocar
umas palavras com ele, coisa
que não costumo fazer.
Perguntei se eu poderia
ajudá-lo de alguma outra
maneira que não dando dinheiro a ele. O jovem ficou
olhando para mim por alguns
segundos, em silêncio, e em
seguida disse que eu poderia
tirá-lo dali.
Confesso que fiquei sem
ação, paralisada e impressionada tanto com a expressão facial do garoto quanto
com a sua resposta.
O semáforo abriu, precisei
andar alguns metros até encontrar um local para estacionar o carro e voltei caminhando até o grupo, em busca de meu interlocutor.
Não consegui mais reconhecê-lo em meio a tantos calouros cobertos de tinta.
Até hoje não consigo esquecer do pedido de socorro
que ele me enviou e que eu
não consegui atender.
Parecia uma criança assustada e sentia-se impotente para sair de uma situação
muito difícil e opressiva.
Já vi, muitas vezes, expressões desse tipo estampadas
nos rostos de crianças enroscadas em suas crises de birra
ou de briga com colegas.
Depois que elas entram
nesse tipo de situação, é muito difícil saírem delas sem a
ajuda firme e serena de um
adulto. Mas, além de conter
situações desse tipo, os adultos precisariam fazer mais:
ensiná-las a conviver, a desenvolver aquilo que chamamos de habilidades sociais.
Em tempos das chamadas
redes sociais, que são contextos virtuais muito próximos
dos mais novos, inclusive de
crianças, tem sido bem difícil
tanto para pais quanto para
professores ter a compreensão da importância desse aspecto da educação.
Mais difícil ainda tem sido
entender o quanto tal desenvolvimento influencia o crescimento intelectual e emocional dos mais novos.
Temos tentado estimular o
aprendizado cognitivo das
crianças desde que elas são
bem pequenas, mas temos
dado pouca atenção ao seu
processo de socialização. E é
esse último que determina o
maior ou menor desenvolvimento do primeiro.
O calouro que se sentia humilhado e impotente para
sair da situação em que fora
colocado por seus pares faz
parte de uma geração que
tem se socializado praticamente sozinha, sem grande
ajuda de nossa parte. Sua
reação e a atitude de seus pares mostram a falta que faz a
nossa presença nesse processo. Isso é um alerta que deve
promover nossa reflexão.
A Unesco, em seu documento a respeito da Educação para o século 21, aponta
o que chamou de "Quatro Pilares" como os conceitos definidores do desenvolvimento
humano. São eles: "Aprender
a ser, aprender a conviver,
aprender a fazer e aprender a
conhecer".
São conceitos interligados,
por isso precisamos dar atenção especial aos ensinamentos de como ser e de como
conviver. Sem eles, não há conhecimento cognitivo que sirva para alguma coisa.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de
"Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)
Texto Anterior: O que eu ponho no meu carrinho Índice | Comunicar Erros
|