São Paulo, quinta-feira, 22 de março de 2007
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Rosely Sayão

Aprender a se desobedecer

As livrarias estão repletas de livros na categoria "auto-ajuda". E eu tive a idéia para mais um. O título pode ser "Como Aprender a se Desobedecer para Alcançar Seus Objetivos e Ter Qualidade de Vida" e será sucesso de vendas, se tiver boa campanha publicitária, claro.
O autor -ou autora- precisa ter boa presença no vídeo e espontaneidade para se sair bem nas entrevistas, cativar o público e aumentar ainda mais as vendas. Ele também terá de ter disponibilidade para continuar a escrever porque, com o êxito do título, as editoras vão querer filhotes dele. "Ensine Seu Filho a Usar a Desobediência a Seu Favor", por exemplo, pode ser o segundo título do fenômeno que se transformará em série.
O parágrafo inicial pode ser assim: "Ouse se desobedecer! A vida toda você aprendeu a desobedecer aos seus pais, ao chefe, às regras de trânsito, aos prazos estabelecidos etc. Mas nunca ninguém ensinou você a desobedecer a você mesmo, a pessoa mais importante de seu universo. Então, torne a autodesobediência parte de sua vida a partir de agora e você alcançará um patamar superior". A expressão "eu vou me desobedecer agora" se transformaria em um mantra. Quem estivesse de dieta e tivesse vontade de comer além do permitido se lembraria dele, os casados iriam usá-lo como oração para escapar às tentações da carne.
As crianças, que se inspiram nos adultos, tentariam incorporar a mania e, quanto mais desobedientes fossem, mais agradáveis seriam consideradas. O problema é que elas não entenderiam a diferença entre desobedecer aos pais e professores e a si mesmo, e a vida de pais e mestres seguiria difícil. Entretanto, depois de um tempo, apesar de o livro se manter na lista dos mais vendidos, tudo continuaria igual para os leitores. É que, passado o entusiasmo inicial, o rei ficaria nu, e as pessoas perceberiam que, entre considerar boas as lições dos livros e conseguir praticá-las, há um longo caminho. Para desobedecer às vontades imediatas, a pessoa precisa ter autonomia e capacidade para se controlar. E a cultura atual valoriza mais o aqui e agora. É por isso que tem sido tão difícil para muita gente fazer dieta: é mais fácil ceder ao prazer imediato do que à promessa de satisfação futura.
Além de autonomia, para praticar a autodesobediência é preciso ser persistente, esforçado, comprometido até os ossos com tal conceito, e a tenacidade não tem sido uma qualidade popular entre nós. Aliás, tal palavra parece estar guardada a sete chaves no dicionário ultimamente, não é? Finalmente -mas só neste texto-, para se desobedecer é preciso ter maturidade para renunciar -já que rejeitar o imperativo das paixões não é simples. Por essas razões, o livro seria esquecido e suas lições, renegadas, mas só até que outro autor tivesse outra boa idéia para escrever a mesma coisa de um outro jeito. É que, no fundo, sabemos que temos sido escravos de nossos impulsos e caprichos. E esse tipo de livro faria, novamente, um grande sucesso.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha) roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br


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