São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2010
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OUTRAS IDEIAS

Wilson Jacob Filho

Sucessão de papéis


[...] EMBORA O SOFRIMENTO PRECEDA A APOSENTADORIA, NEM POR ISSO HÁ PREPARAÇÃO PRÉVIA PARA ESSA FASE

Ouvi atentamente três entrevistas de diferentes atrizes comentando seu envolvimento com os personagens interpretados ao longo de suas carreiras. Ambientes e entrevistadores diferentes impediram que cada uma delas pudesse basear-se no que as demais disseram, o que permite comparar os depoimentos segundo suas opiniões individuais.
A mais jovem, exultante com a recém-conquistada notoriedade e ainda visivelmente identificada com a personagem que interpretou por alguns meses na telenovela, falou da sua dificuldade em romper relações com essa outra versão de si mesma: "Acho que ela faz parte de mim e eu dela".
A de meia-idade foi mais eclética, comentando seus personagens mais conhecidos e dando-lhes diferentes importâncias na sua carreira: "Ainda há papéis que pretendo interpretar porque agora me sinto preparada para eles".
Foi a mais longeva, porém, quem fez as considerações mais aprofundadas. Alinhavou a longa sequência de papéis em seu contexto evolutivo, considerando a essência da relação entre o criador e a criatura.
"Mais importante do que "quem" eu interpretei, é "como" eu os interpretei. Cada um desses personagens marca uma fase da minha vida. Hoje, provavelmente, eu os interpretaria de outra maneira."
Esse contraste de opiniões me permitiu compreender melhor as dificuldades com que muitos enfrentam a renovação de atividades ao longo da vida.
Refiro-me, principalmente, ao momento da aposentadoria, ou do último filho que deixa a casa dos pais. Embora, em geral, o sofrimento preceda o fato, nem por isso há preparação prévia para essa fase.
Curiosamente, é mais frequente encontrar aqueles que tentam prolongar a existência do personagem "funcionário insubstituível" ou da "mãe resolve tudo" do que os que avaliam ganhos e perdas dessa fase e preparam-se para a próxima.
A frase clássica que identifica essa incapacidade é "Dediquei toda a minha vida a essa função, não sei fazer outra coisa".
Relembra o ator de um só papel Leonard Nimoy, que imortalizou o Senhor Spock da versão original de "Jornada nas Estrelas", nos anos 60 e 70. Em entrevista recente, confessou não saber, na maioria das vezes, quem ele é além do célebre cidadão de Vulcano.
Em síntese, todos havemos de entender que, queiramos ou não, a vida nos reserva uma longa e extensa sucessão de papéis. Nosso desempenho será melhor nuns do que noutros, o que nos permitirá compreender melhor os fatores que determinaram o sucesso ou o insucesso de cada atuação e, com isso, aprimorar nossa capacidade de participação. Não há, portanto, motivo para querer que os papéis se eternizem. Se assim fosse, jamais teríamos a oportunidade de conhecer a grande diversidade das nossas aptidões, que podem ser manifestas, principalmente, nas fases mais avançadas da vida.


WILSON JACOB FILHO é professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP)

wiljac@usp.br

Leia na próxima semana a coluna de Michael Kepp


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