São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Wilson Jacob Filho

Braços entrelaçados


[...] A MENINA ADOLESCEU E SUA ALTURA ULTRAPASSOU A DA SENHORA. MAS A CUMPLICIDADE DA RELAÇÃO PERMANECEU INALTERADA

Há mais de 12 anos acompanho meu filho à escola. Muita coisa mudou nesse período. A mão pequena, sempre à procura da mão maior, deu lugar ao esboço da barba e do bigode. O olhar inseguro na hora da despedida foi substituído por monossílabos de quem está convicto de suas idéias e de seus ideais.
Meu filho cresceu. De uma criança indefesa tornou-se um adolescente a caminho da independência. Paralelamente, seu entorno evoluiu. Em todos os partícipes desse ecossistema pode-se observar a ação do tempo: nos colegas e em seus pais, nos funcionários, nos professores e no próprio prédio do colégio, no trânsito, no terreno onde se construiu um edifício e na casa demolida onde, em breve, outro será edificado.
Doze anos é muito tempo e permite muitas modificações. É fantástico ver que esse processo obedece a um intrincado conjunto de ações e reações, ao qual denominamos "envelhecer". Melhor ainda é perceber que resultaram mais ganhos do que perdas. Quando ocorre de forma bem cuidada, o envelhecimento tende a aprimorar os sistemas. Mesmo as deleções devem ser entendidas como fundamentais para a evolução.
Essencial, porém, é constatar que os elementos envolvidos em cada uma dessas transformações transcendem o tempo, assim como, a despeito de quão complexos sejam os instrumentos e os recursos sonoros da música moderna, as notas que se associam no pentagrama continuam sendo as mesmas.
Os exemplos dessa longevidade da essência povoam nosso cotidiano. No cenário descrito, um deles me chamou a atenção. Desde o início desse ritual matutino, reparei em uma senhora que acompanhava uma criança até o interior da escola.
Chegavam de braços entrelaçados e assim permaneciam até que o som do sino avisasse que chegara a hora da despedida. O tempo passou. A menina adolesceu e sua altura ultrapassou a da senhora. Mas a cumplicidade da relação permaneceu inalterada. O andar pausado, a sincronia dos passos para que possam permanecer justapostas, a proximidade dos rostos que propicia a intimidade da conversa e os braços, que seguem entrelaçados, garantem a continuidade da integração.
Esta talvez seja uma mostra de quão importante é a convivência intergeracional. Ambas, ao longo deste tempo, deram e receberam de maneira interativa. A proteção da criança foi se transformando no apoio que a jovem, agora, oferece à senhora. O vigor desta deu maior espaço à experiência, e a inocência da então menina evoluiu ao desabrochar da juventude, mas as capacidades e necessidades de ambas, embora diferentes, continuam evidentes.
Observo-as curiosamente, mesmo que não saibam, há muitos anos. Espero fazê-lo por muitos mais. Sei que, em breve, não mais acompanharei meu filho à escola. Mesmo assim, buscarei por elas nos caminhos da vida, para atestar que, a despeito do tempo, a atração entre os conteúdos de cada geração continuará eternamente presente.


WILSON JACOB FILHO , professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br



Leia na próxima semana a coluna de Michael Kepp


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