São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008
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NEUROCIÊNCIA

SUZANA HERCULANO-HOUZEL


O prazer do velho novo

Acabo de ceder meu penúltimo bastião de resistência tecnológica: rendi-me à tecnologia móvel (mas ainda estou irredutível quanto a não comprar livros em formato eletrônico; prefiro papel que possa levar comigo). Há anos eu fazia questão de ter um telefone celular que fosse apenas isso, um telefone -e o mais barato possível. Mas um aparelhinho com wi-fi, tela grande, teclado de gente e e-mail, e que ainda faz as vezes de modem para meu computador encheu-me os olhos.
Fui à loja com meus filhos, e é claro que o atendimento levou uma eternidade. Apesar disso, as crianças não reclamaram. Meu menino estava entretido com seu novo dinossauro-que-dobra-e-vira-pedra, e minha filha mais velha, com a perspectiva de ganhar, na carona do meu, um celular novo, já escolhido da vitrine. A neurocientista de plantão toma nota: até no pior dos lugares, o poder da novidade sobre o cérebro é fabuloso.
Somos verdadeiros detectores de novidades. Deixe um objeto novo em meio à confusão habitual da sua mesa e o cérebro acusará sua presença. Perto do conhecido, do familiar, o novo é duplamente digno de atenção: é potencialmente perigoso, mas também traz possibilidades novas. Como é muito mais importante dedicar esforços para lidar com informações novas do que com o que já conhecemos, a presença do novo aciona automaticamente no cérebro (de homens e ratos igualmente!) o locus coeruleus, estrutura que nos deixa acordados e atentos. Esta, por sua vez, ativa uma outra, no sistema de recompensa, que direciona nosso interesse ao objeto novo. Novidades, portanto, nos deixam imediatamente atentos a elas e interessados -o que é ótimo, pois aumentam nossas chances de aprender com o que é novo.
Por isso, murcho ao descobrir que meu desconto não se estende ao aparelho novo que minha filha queria e antecipo sua frustração. Pergunto-lhe então se ela quer ficar com o meu aparelho velho, convenientemente rosa-choque. Siiiiiiiim! O que é velho para mim é novo para ela -e isso é tudo o que importa ao seu sistema de recompensa.
Aproveito a idéia para fazer minhas crianças gostarem da triagem periódica de roupas e brinquedos não mais usados, coisa que eu detestava fazer quando era criança. Desfazer-se de objetos não é algo atraente, mas pensar que o nosso velho será o prazer novo de alguma outra criança deixa mesmo meus filhos alegres -e eu com eles.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (Editora Sextante) e do site O Cérebro Nosso de Cada Dia (www.cerebronosso.bio.br)
suzanahh@folhasp.com.br



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