São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 2000
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drible a neura

A saia justa de cruzar com terapeuta na rua

STELLA GALVÃO
FREE-LANCER PARA A FOLHA

Dois casais se encontram em uma feira de arte. Sob o olhar ciumento da esposa, um dos homens cumprimenta a mulher do outro. Ela devolve o cumprimento, enquanto seu marido observa a cena placidamente. "Ele não quis saber quem era. Na sessão do dia seguinte, o cliente também não tocou no assunto, e a nossa relação continuou boa", diz a psicóloga Vivian Schindler.
Só de imaginar um encontro desses com o terapeuta causa arrepios em muita gente. Fora do consultório, o acordo tácito de preservação da privacidade e da cumplicidade é ameaçado. Por isso, encontros casuais na rua ou no restaurante em geral provocam profundo constrangimento. Então, como reagir ao topar com o terapeuta e vice-versa? Entre as diversas correntes da psicologia, a psicanálise é uma das mais rígidas sobre o comportamento do profissional dentro e fora do consultório: nunca dar a mão ou fazer algum movimento que propicie contato físico, manter neutralidade a qualquer custo, fingir que não vê se encontra o paciente em público. Essa última recomendação pode traumatizar o analisando. "Já atendi pessoas que se sentiram péssimas depois de encontrar em público o psicanalista que os atendeu por dez anos ou mais", conta Mara Cristina Souza de Lucia, diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas (SP).

O ambiente neutro
O que está em jogo, nesse caso, é a manutenção do chamado "setting" da análise, ou seja, o ambiente, a princípio neutro, onde uma pessoa pode desnudar sua vida por meio das palavras e do não-dito. A orientação psicanálitica parece fundamentar o comportamento de Mara, que afirma que os encontros em público fazem parte da rotina. "Coloco em prática a boa educação e cumprimento. Mas, se há um movimento da outra parte no sentido de uma conversa ou aproximação maior, peço licença e me afasto." Adepta da psicologia psicodinâmica, Vivian Schindler acredita que o cliente pode se sentir intimidado durante um encontro desses. "Ele pode não querer encontrar um terapeuta para quem contou intimidades temendo se expor socialmente", diz. A pessoa pode, por exemplo, estar acompanhado por um amigo ou parente que não sabe que ela faz terapia e se sentir obrigada a mentir caso o terapeuta tome a iniciativa de cumprimentá-la. O risco é o terapeuta levar isso muito a sério. "Ele pode parecer um maluco se escondendo atrás de colunas para não ser visto pelo cliente", diz Vivian. Como a maioria dos colegas que conhece, Vivian opta por respeitar a decisão do cliente. Se ele tomar a iniciativa e cumprimentar, muito bem. Se não, ok. "Ele é o comandante da relação", define.

Mínimo de papo
A psicóloga e colunista da Folha Rosely Sayão avalia os encontros fora do consultório como "contatos inesperados e rápidos, nos quais se deve reagir com naturalidade, equivalente a encontrar um conhecido com quem não tem intimidade". Para ela, vale a regra da "fala mínima", que se limita a um simples cumprimento. "No ambiente social, o paciente receia que sua intimidade seja devassada", diz Sayão. Para o paciente, uma alternativa para não ser pego de surpresa em uma situação dessas é conversar com o terapeuta sobre o assunto nas primeiras sessões, pois é nessa fase que se estabelecem os padrões de relacionamento. Uma coisa é certa, segundo Rosely: o profissional nunca deve dar o primeiro passo em uma situação de saia justa como os encontros públicos. Se o cliente não cumprimentar, "o terapeuta fica na dele", diz ela. É uma das raras ocasiões em que a indiferença do outro é perfeitamente compreensível e aceitável.


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