São Paulo, quinta-feira, 22 de novembro de 2007
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Outras idéias - Dulce Critelli

Sobre sonhos e sonhadores

Dia desses, enquanto me exercitava na bicicleta ergométrica, assistia à TV (preciso de ajuda para o tempo passar mais depressa!). E lá estava, de novo, Bruce Willis em "Duas Vidas". Gostei de rever.
Na ficção simples e bem montada, Russel é um executivo na casa dos 40 surpreendido por uma visita: ele mesmo, quando ainda era um garoto de oito anos. Quem promove o encontro, saberemos no final, é também ele próprio, então mais tarde e mais velho.
Presente, passado e futuro se apresentando, simultâneos, no drama de um homem que vive um duro embate com seu sonho mais essencial: ser piloto e ter "o melhor cão do mundo", chamado Chester (um golden retriever, que eu também gostaria de ter).
Russel abandona seu desejo e se torna um profissional de marketing, ácido, distante, avesso a fantasias e a tudo que não fosse objetivo e pragmático. E é essa a cobrança que o garoto, ele mesmo, quando reaparece em sua vida, lhe faz: por que ele não realizou as coisas que mais queria?
O drama de Russel é o mesmo de todos nós. Há sonhos preciosos que jamais tornamos projetos e, então, amargamos. Por mais bem-sucedidos que pareçamos ser, ficamos áridos e desérticos. Esse é o resultado, inexorável, de destinos não cumpridos.
É comum dizermos que não realizamos nossos maiores sonhos por falta de oportunidade, de dinheiro ou de estímulo. Porque estávamos comprometidos até a raiz dos cabelos com coisas que não poderíamos abandonar. Por medo de correr riscos...
Também não realizamos nossos sonhos porque entramos numa vida em que eles não cabem mais. Ou porque concordamos com a opinião daqueles com quem convivemos, de que eles são bobos, infantis, sem futuro.
Percebo, no entanto, outra razão, que me parece ser sempre a mais corriqueira e que o filme desoculta com perspicácia. Às vezes, não realizamos nossos sonhos porque desabonamos o sonhador. Por exemplo, em nome de que Russel levaria a sério a aspiração do menino que ele criticava por ser covarde, chorão, gorducho e desajeitado? Do menino diante de quem ele se sente envergonhado e humilhado?
A tendência usual é sepultar o "eu" que nos envergonha num passado inacessível. Tarefa para o esquecimento. Um jeito de nos negarmos um lugar no mundo. No entanto, foi esse "eu", que recusamos, que sonhou os nossos sonhos mais preciosos. Só ele sabe o que sonhamos um dia. Portanto, se afastamos o sonhador, perdemos seus sonhos e nos divorciamos de nós mesmos.
O filme ainda não acabou, mas o tempo do exercício, sim (ufa!). Deixo ao menino e ao homem, no cinema, a tarefa de desvendar esse nó.


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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