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Outras idéias - Dulce Critelli
Sobre sonhos e sonhadores
Dia desses, enquanto
me exercitava na bicicleta ergométrica,
assistia à TV (preciso
de ajuda para o tempo passar
mais depressa!). E lá estava, de
novo, Bruce Willis em "Duas
Vidas". Gostei de rever.
Na ficção simples e bem
montada, Russel é um executivo na casa dos 40 surpreendido
por uma visita: ele mesmo,
quando ainda era um garoto de
oito anos. Quem promove o encontro, saberemos no final, é
também ele próprio, então
mais tarde e mais velho.
Presente, passado e futuro se
apresentando, simultâneos, no
drama de um homem que vive
um duro embate com seu sonho mais essencial: ser piloto e
ter "o melhor cão do mundo",
chamado Chester (um golden
retriever, que eu também gostaria de ter).
Russel abandona seu desejo
e se torna um profissional de
marketing, ácido, distante,
avesso a fantasias e a tudo que
não fosse objetivo e pragmático. E é essa a cobrança que o
garoto, ele mesmo, quando reaparece em sua vida, lhe faz: por
que ele não realizou as coisas
que mais queria?
O drama de Russel é o mesmo de todos nós. Há sonhos
preciosos que jamais tornamos
projetos e, então, amargamos.
Por mais bem-sucedidos que
pareçamos ser, ficamos áridos
e desérticos. Esse é o resultado,
inexorável, de destinos não
cumpridos.
É comum dizermos que não
realizamos nossos maiores sonhos por falta de oportunidade,
de dinheiro ou de estímulo.
Porque estávamos comprometidos até a raiz dos cabelos com
coisas que não poderíamos
abandonar. Por medo de correr
riscos...
Também não realizamos
nossos sonhos porque entramos numa vida em que eles não
cabem mais. Ou porque concordamos com a opinião daqueles com quem convivemos,
de que eles são bobos, infantis,
sem futuro.
Percebo, no entanto, outra
razão, que me parece ser sempre a mais corriqueira e que o
filme desoculta com perspicácia. Às vezes, não realizamos
nossos sonhos porque desabonamos o sonhador.
Por exemplo, em nome de
que Russel levaria a sério a aspiração do menino que ele criticava por ser covarde, chorão,
gorducho e desajeitado? Do
menino diante de quem ele se
sente envergonhado e humilhado?
A tendência usual é sepultar
o "eu" que nos envergonha
num passado inacessível. Tarefa para o esquecimento. Um
jeito de nos negarmos um lugar no mundo.
No entanto, foi esse "eu",
que recusamos, que sonhou os
nossos sonhos mais preciosos.
Só ele sabe o que sonhamos
um dia. Portanto, se afastamos
o sonhador, perdemos seus sonhos e nos divorciamos de nós
mesmos.
O filme ainda não acabou,
mas o tempo do exercício, sim
(ufa!). Deixo ao menino e ao
homem, no cinema, a tarefa de
desvendar esse nó.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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