São Paulo, quinta-feira, 23 de maio de 2002
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outras idéias

michael kepp

A arte de pechinchar

O incidente acabou com meu tesão de pechinchar. Eu já havia parado de barganhar nas feiras livres porque encontrara o menor preço e voltava aos mesmos feirantes toda semana

Até vir para o Brasil, 20 anos atrás, eu era muito inexperiente na arte de barganhar, apesar de ser judeu. Nos Estados Unidos, a maioria dos preços é fixa. As armas dos comerciantes de lá são crédito fácil, promoções e até psicologia. Um vendedor de carros usados que eu conhecia de lá usava como último recurso a frase: "Tem razão, esse carro não é para você. É elegante demais". Fazia isso para provocar os consumidores a pensar que mereciam dirigir com elegância.
O escritor da revista "New Yorker", Adam Gopnik, descreveu recentemente a reação de um caixa de uma delicatessen à porção reduzida de salmão defumado que ele estava comprando para oito pessoas: "Eu teria vergonha de colocar isso à mesa". E Gopnik, por puro constrangimento, comprou mais. Ou seja, nos Estados Unidos, o vendedor manipula o comprador.
Quando cheguei ao Brasil, era tudo ao contrário. Por quê? Uma economia cronicamente deficiente pressiona os fornecedores de bens e serviços, especialmente os camelôs e os biscateiros, a se curvarem à melhor oferta do comprador. Por isso o comprador pode recusar-se a pagar o que pede o camelô e sair andando quase certo de que vai ouvir uma oferta mais baixa.
Mas, só depois de entrar nesse jogo, eu me dei conta da injustiça que é pechinchar com alguém que não tem poder de barganha. Em uma feira do livro, ofereci um valor ridículo a um camelô por um livro raro de fotografias do Rio antigo. Depois de muito regatear, aumentei um pouco a oferta, recusei-me a pagar mais e, por fim, ameacei ir embora. Ele se rendeu ao meu preço, mas depois disse por quê: "Para colocar comida na mesa hoje à noite".
O incidente acabou com meu tesão de pechinchar. Eu já havia parado de barganhar nas feiras livres porque encontrara o menor preço e voltava aos mesmos feirantes toda semana. Apesar de ter descoberto que podia regatear o preço de tudo, de serviço de mecânico a obturações, procurar o preço mais baixo se revelou menos exaustivo emocionalmente.
Hoje, só pechincho quando o valor cobrado parece injusto e eu não tenho tempo ou paciência de comparar preços. Por quê? Se eu não regatear o preço astronômico do serviço autorizado de geladeiras e máquinas de lavar, eu me sinto vítima de um "assalto autorizado".
Entretanto, havia pouco tempo, eu esperava tirar finalmente algum prazer da arte da pechincha quando o joalheiro de maior prestígio no Brasil me pediu que fizesse que a versão em inglês do folheto de sua joalheria soasse como uma poesia. Quando eu lhe disse que levaria em conta o nome dele na hora de calcular meu preço, ele disse: "Diga quanto é, e eu pagarei sem problema". Seu gesto gracioso cortou pela raiz minha vontade de pedir uma remuneração alta e me levou a pedir um valor razoável. Em vez de trocar ofertas de preço, trocamos gentileza humana, um negócio mais gratificante.
Igualmente gratificante foi uma pechincha que impediu a Globo de me explorar financeiramente. Depois de entrevistar o chefe de programação Daniel Filho para a "Time", em 1987, ele disse que eu ficaria perfeito no papel do neurocirurgião que diz ao magnata vivido por Tarcísio Meira, na novela "Roda de Fogo", que seu tumor cerebral é fatal.
Concordei. Ele me mandou o gerente administrativo de novelas, que me fez uma oferta ridícula pela minha ponta. Eu disse que trabalharia até de graça para ter meus 15 minutos de fama, "mas", continuei, "uma das empresas mais ricas do Brasil deveria ter vergonha de me oferecer tão pouco". Talvez por constrangimento, ele me ofereceu quatro vezes mais, um cachê aceitável.
Mas, um dia depois de eu ter gravado minha ponta, ele me ligou em pânico, dizendo que a câmera apresentara um defeito e que minhas cenas tinham sido inutilizadas. Ele me mandou voltar ao estúdio para gravar outra vez. Sua atitude prussiana e o desespero na voz me levaram a exigir pagamento dobrado. Afinal, estavam me fazendo trabalhar em dobro. Para minha surpresa, ele concordou -talvez porque estivesse acostumado a lidar com prima-donas.


MICHAEL KEPP (mkepp@openlink.com.br), jornalista americano, está radicado no Brasil há 20 anos


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