São Paulo, quinta-feira, 23 de julho de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Dulce Critelli


Paulo e Eliane

[...] UMA VIDA FELIZ É UMA VIDA EM QUE EMPENHAMOS TEMPO, ESFORÇO E TALENTOS PARA CONCRETIZAR ALGO

Conheci Paulo e Eliane pela TV. Vítimas da poliomielite, moram no Hospital das Clínicas desde que tinham cerca de dois anos -Paulo desde 1969 e Eliane, de 1975. Médicos e funcionários são a família que amealharam nesses anos todos.
Ela movimenta só a cabeça. Ele, braços e mãos, com dificuldade. Nem seus pulmões trabalham sozinhos.
Ambos são doces e alegres. Há tristeza por suas condições, mas não há neles lástima, raiva, inconformismo ou vitimação.
Estão de bem com a vida, que lhes deu tão pouco. São cheios de sonhos e de projetos. Paulo é webdesigner. Eliane pinta com a boca e seus quadros são expostos pelo mundo.
Difícil não nos sentirmos diminuídos diante de tanta capacidade de vida e de empenho. Nós, que deixamos de fazer em nome de limites passageiros: dinheiro insuficiente, preguiça, indisposição, tédio, um vício...
Ouço tantos jovens repetirem que não sabem o que querem e outros que reclamam de ter que fazer alguma coisa, mesmo que seja estudar. Muitos recusam trabalho, experiências e atividades porque dá trabalho ou porque não têm garantias de um sucesso espetacular ou porque não vão ganhar tanto quanto gostariam.
Mas a frase que mais ouço para justificar o pouco fazer, e não apenas dos jovens, é: "Só faço o que me dá prazer".
É certo que a vida na sociedade contemporânea, cuja mola mestra é o consumo, elege e alardeia o prazer como único índice de felicidade, de realização e de liberdade. Mas o prazer a que a sociedade se refere restringe-se à mera saciedade. Satisfazer desejos (fácil e rapidamente, com a compra de algum produto), que logo serão substituídos por outros, é a meta.
Não é fazer o que dá prazer que garante a integridade pessoal nem a autonomia. Muito menos a liberdade. O prazer passa logo, como também os desejos variados e superficiais que sentimos. Muitas vezes, o prazer sentido está ligado só a aspirações sem raízes, a interesses vagabundos.
A vida abastecida facilmente deixa a gente mole, inerte. Somos, hoje, pessoas cheias de caprichos, mas com a vontade enfraquecida. Pessoas sem poder.
Uma vida feliz é uma vida em que empenhamos tempo, esforço, habilidades e talentos para a concretização de algo, nem sempre do que mais cobiçávamos ou dos nossos sonhos. Por vezes, trata-se de fazer o que é possível ou necessário.
É a realização de coisas e de projetos que nos faz sentir inteiros, capazes, poderosos. O sentimento de autorrealização não vem dos desejos atendidos, mas das obras acabadas -e das que temos em andamento.
Quando ficamos à espera do que cremos que nos dará prazer, o comum é atolarmos numa paralisia. Se insistimos nessa expectativa, perdemos a capacidade de identificarmos, de fato, o que queremos e mergulhamos num tédio sem saída.
Felicidade, autonomia, integridade só vêm como resultado de nossas ações. E só nos sentimos livres quando superamos nossas limitações. Paulo e Eliana que o digam.

DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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