São Paulo, quinta-feira, 23 de setembro de 2004
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outras idéias

michael kepp

"Fahrenheit" não se traduz em graus centígrados

Diante da antipatia brasileira por Bush, eu esperava que "Fahrenheit 11 de Setembro" recebesse mais elogios aqui do que nos Estados Unidos e na Europa. Afinal, apresenta uma crítica mordaz a uma pessoa que a maioria dos brasileiros considera um líder inescrupuloso e incompetente. Mas a imprensa daqui crucificou o filme -e em círculos progressistas se tornou até moda criticá-lo. Por quê?
Afinal, ganhou a Palma de Ouro em Cannes neste ano e é o favorito para ficar com o Oscar de melhor documentário. Uma pesquisa da revista "Editor & Publisher" mostrou que 56 entre 63 críticos de cinema americanos elogiaram o filme.
A imprensa brasileira chegou a uma conclusão bem mais severa. Na Folha, um articulista o comparou a "filmes de propaganda de Stálin ou Hitler" e um jornalista o chamou de "tendencioso e mentiroso, mas histórico". No "Estadão", um colunista o chamou de "maniqueísta" e um crítico disse que era "manipulador" e "panfletário confesso". No "Globo", um articulista sustentou que o filme era um apanhado de "mentiras" e "distorções", além de chamá-lo de "lixo", como fez o crítico da revista "Bravo", que também chamou Michael Moore de "o perfeito idiota".
Muitos de meus amigos brasileiros com idéias progressistas também chamaram o filme de "panfletário", mas alguns gostaram dele -apesar desse "defeito". Um amigo que ensina cinema em uma universidade carioca disse que o filme dividiu seus 300 alunos em dois grupos antagônicos: a maioria chamava o filme de "manipulador" e a minoria o elogiava.
Talvez americanos e brasileiros tenham reagido ao filme de modo tão diferente por causa de valores culturais conflitantes. Nos Estados Unidos, existe uma longa tradição de "jornalismo engajado", uma posição editorial declarada, em geral progressista, encontrada em certos filmes, livros, jornais e revistas. Essa forma de jornalismo -mais um ensaio denso do que uma reportagem investigativa- mostra que o ponto de vista disfarçado da grande mídia faz com que ela ignore, distorça ou banalize as notícias. Então, o jornalismo engajado deve preencher com uma voz lúcida e alternativa esse vazio deixado na mídia.


"Porque Moore é um satírico provocador diante da câmera, a desferir ataques pessoais contra os poderosos, seu jeito instigante deixa os brasileiros, acostumados com homens cordiais que se mantêm nos bastidores, como o documentarista João Moreira Salles, nada à vontade"


O filme de Moore fez isso de modo extremamente lúdico e divertido. Também proporcionou algo que falta à maioria dos documentários: documentos novos. Apresentou a única fita de Bush sentado numa sala de aula, paralisado diante de uma turma de crianças por sete minutos, depois de o segundo avião bater nas torres gêmeas. Por quê? A grande mídia americana não estava engajada o suficiente para encontrá-la nem para desafiar a afirmação do governo de que o Iraque tinha armas de destruição em massa.
A grande mídia no Brasil propaga o mito de que a notícia deve ser objetiva e imparcial. E o mercado aqui é pequeno demais para sustentar qualquer tipo de jornalismo engajado. Não é surpresa constatar que nenhum livro, filme ou artigo de revista tenha examinado com olhar crítico a vida de Roberto Marinho ou de ACM. A maioria dos documentários sobre famosos, como os sobre Pelé, Nelson Freire e Paulinho de Viola, são apenas massagens no ego deles. Suas distorções não ofendem.
"Fahrenheit" também faz parte de outra tradição pouco difundida no Brasil, o estilo agressivo de entrevistar que parece dizer "te peguei!", introduzido por programas jornalísticos como o "60 Minutes" desde o fim dos anos 60. Porque Moore é um satírico provocador diante da câmera, a desferir ataques pessoais contra os poderosos, seu jeito instigante deixa os brasileiros, acostumados com homens cordiais que se mantêm nos bastidores, como o documentarista João Moreira Salles, nada à vontade.
A imprensa brasileira preferiu "Tiros em Columbine" a "Fahrenheit" talvez porque suas teorias bem mais radicais não foram acompanhadas por ataques pessoais, exceto por uma cena em que Moore vai à casa de Charlton Heston para questionar a política de um grupo liderado pelo astro, que defende a venda irrestrita de armas nos Estados Unidos. Os críticos daqui açoitaram Moore por provocar um alvo fácil, um idoso em sua própria casa -o que não é atitude de um homem cordial.
Em resumo, muitos brasileiros criticaram "Fahrenheit" porque sua atitude instigante e engajada vai contra a sua tradição cultural. Pelo mesmo motivo, a maioria dos brasileiros arrasa musicais de Hollywood e filmes que usam o beisebol como pano de fundo metafórico. Eles não têm o vocabulário cultural necessário para apreciar esses filmes, mantendo seu termômetro em centígrados baixos em relação a "Fahrenheit".

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 21 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - confissões e desabafos de um gringo brasileiro", (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br


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