São Paulo, terça-feira, 23 de novembro de 2010
Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

OUTRAS IDEIAS

FRANCISCO DAUDT fdaudt2@gmail.com.br

O lado negro da força


Não há bonzinhos nem mavaldinhos. Somos todos humanos e feitos das mesmas coisas, em quantidades diferentes


"FULANO É um psicopata: matou a família e foi ao cinema!" Sinto muito, fulano é um ser humano. Pergunte-se, ninguém está ouvindo: você nunca pensou "só matando?"; você não vibrou, vendo "Tropa de Elite 2", quando o Nascimento enche o político corrupto de porrada?; não participaria de um linchamento, com a galera gritando "mata"?; não teve tentação quando te deram troco a mais?
E nunca experimentou a sensação de "run amok" (é o que dizem do elefante que enlouquece e sai arrasando tudo o que vê pela frente, árvores, aldeias, pessoas)?
Um ódio tão intenso subindo pela garganta, que você percebe que não responde mais por si, que vai quebrar pratos, cadeiras e a cabeça de quem te produziu o ódio, até ver os miolos gosmentos dele se esparramarem pelo chão? Nunca devaneou com coisas parecidas? De passar aquela filha de uma senhora de reputação duvidosa por um moedor de carne?
E, convidado por um político para pegar carona num jatinho lindo para uma tarde em Fernando de Noronha, às custas do dinheiro do contribuinte, mas para seu gozo único, não pensaria "ele vai para lá mesmo, qual o problema de ir junto?" e, ainda, não perguntaria "posso levar minha namorada?".
Eu sei, você não faria nada disso. Primeiro, porque recebeu uma educação esmerada e, na sua casa, todos criticam quem faz essas coisas. Segundo, essas ocasiões nunca se apresentaram a você.
"A ocasião faz o ladrão" foi uma coisa que minha mãe me ensinou: não deixe dinheiro solto. A empregada pode ser de confiança, mas é abuso tentá-la. Se ela roubar, a culpa é sua! "Confie, desconfiando", dizia o marechal Floriano Peixoto, que entendia da natureza humana.
É, somos capazes desses horrores todos, principalmente se a sobrevivência está em jogo. É bem verdade que um percentual mínimo da humanidade tem o gozo especial de fazer os outros de idiotas e rompe todas as regras sociais com o cuidado de não ser pego. São os psicopatas.
Mas a maioria funciona direitinho, respeita as leis (sobretudo quando funcionam e há punições para quem as transgride). Muitos de nós fomos criados vendo as vantagens do agir bem: "Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem"(como dizia Jorge Ben Jor).
O lado negro não surge porque há bonzinhos e há malvadinhos. Somos todos humanos e compostos das mesmas coisas, em quantidades diferentes, vivendo em circunstâncias diferentes.
Uma das coisas que temos é algo espetacular em nossa natureza e chama-se "altruísmo recíproco": faça-me algum bem e terei vontade de retribuir (e se bancar o esperto, se não retribuir, vou me afastar de você, pois percebi que você é do tipo que "leva vantagem"). E, ao retribuir, você vai me ajudar de novo, e assim por diante.


FRANCISCO DAUDT, psicanalista e médico, é autor de "Onde Foi Que Eu Acertei?", entre outros livros


Próximo Texto: Tudo em três tempos
Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.