São Paulo, quinta-feira, 24 de janeiro de 2002
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outras idéias

E o tempo corre

Os homens das salas de projeto das enormes fábricas vão gerando necessidades que pedem cuidados e tornam cada fazer mais curto e cada sonhar mais curto também

Anna Veronica Mautner

Se você tiver a sorte de vencer a corrida contra o tempo, vai ganhar fartas fatias de tempo livre. Vai poder aproveitá-las para sonhar e fantasiar.
A respeito do tempo, duas das queixas que mais escuto são que ele corre, que o ano mal começa e já está acabando, e que falta tempo livre. Se nos sentimos assim, mesmo sabendo que o tempo do relógio não mudou, como explicar que essa sensação esteja tão generalizada? Sem pretender esgotar o assunto, tenho ganas de apontar um bode expiatório: a tecnologia que se infiltra no nosso cotidiano.
Vou dar alguns exemplos banais de como sou roubada em meus devaneios e minhas fantasias. Provavelmente isso deve ter algo a ver com o jeito estressante como vivo. Enquanto eu não tinha máquina de escovar dente, o ritual da escovação estava tão automatizado que podia pensar em uma porção de coisas enquanto a escova ia e vinha, obedecendo à risca a orientação do dentista. Agora eu tenho uma máquina que encurta o tempo da escovação, que pode ser tão ou mais eficiente que o velho jeito, mas na qual tenho de prestar atenção. Não vou deixar o motorzinho solto dentro da boca com a mesma inocência com que fazia com a velha escova. E eu não posso devanear mais enquanto lavo o dente. É um minuto de devaneio aqui, outro minuto ali na cozinha, e, no fim do dia, mal tive tempo de me lembrar do sonho que tive (ou não tive) e que criou uma sensação qualquer.
Os homens das salas de projeto das enormes fábricas vão gerando necessidades que pedem cuidados e tornam cada fazer mais curto e cada sonhar mais curto também. E, quando falta luz, acaba a pilha, descarrega a bateria ou o motor quebra, temos de chamar o "homem especialista", porque nós, cada vez mais, só apertamos botão e prestamos atenção. O "som", filho da vitrola e neto do gramofone, transforma qualquer sala em centro de música onde não se desafina, não se erra. O CD nem mesmo envelhece, chia ou risca. Ou funciona ou está quebrado.
Vivemos o tempo do microondas, do forninho, do liquidificador, da batedeira, que nos desensinam a arte de conhecer os ingredientes. Na batedeira, qualquer clara vira suspiro. O microondas derrete tudo o que está congelado de acordo com uma teoria que eu não conheço. Só o manual e o homem que inventou essa máquina é que sabem. Tudo para economizar tempo. É só apertar o botão e o calor se faz sem fogo. Para o almoço, tiro do freezer, ponho no microondas, bato no liquidificador, ponho na sopeira. E, depois, a máquina que lave a louça. Se tem muita gordura, é só virar um botão para enxaguar mais uma vez.
O tempo deveria sobrar. Mas o computador e a televisão ocupam o tempo que economizamos. Os viajantes profissionais rodam o mundo à procura de cantos exóticos, paisagens inesperadas que são fotografadas no melhor ângulo, com a melhor luz, na estação do ano mais adequada para aquele passeio. Eu não preciso nem viajar. Lá na NBC, na BBC, na CNN ou mesmo na Globo, eles decidem, e eu escolho qual é o mundo que vou ver hoje. Tomada pelo tempo desses outros, não tenho mais o meu tempo. Eu fico 15 minutos no Cazaquistão, porque assim editou um outro alguém que também não foi lá. Vivo a vida no tempo do outro.
Como a indústria quer que eu use muitos aparelhos, para que as suas ações subam no mercado, eles roubam e comprimem o meu tempo, e os anos vão andando mais depressa do que antes. Não sei quanto a você, mas a minha vida está sendo editada, prensada por estranhos.
Quero toda a tecnologia do mundo para prevenir doenças, sanar dores. As máquinas devem continuar a quebrar pedras, moer grãos, plantar sementes. Mas, sempre que possível, quero ver o sol se pondo. Não quero ser sempre submetida ao pôr-do-sol editado no vídeo. Quero esperar a maré subir. Quero ver a emulsão do ovo com o óleo virar maionese devagar, ao ritmo da minha mão que deve mexer sempre para o mesmo lado. Enquanto a maionese vai crescendo e a mão vai cansando, eu me harmonizo com a vida.
Proponho inverter o jogo. Vamos roubar tempo para voltar a viver, um pouco que seja, a hora de 60 minutos. Para o nosso bem, dirão muitos. Eu quero roubar um pouco de tempo para mim. Como se diz há muito tempo, ladrão que rouba ladrão tem mais longos anos de vida.



ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Crônicas Científicas" (ed. Escuta), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@attglobal.net



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