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Outras idéias - Dulce Critelli
Propósitos e liberdade
Desde que nascemos e
a nossa vida começou, não há mais nenhum ponto zero
possível. Não há como começar
do nada. Talvez seja isso o que
torna tão difícil cumprir propósitos de Ano Novo. E, a bem da
verdade, o que dificulta realizar
qualquer novo propósito, em
qualquer tempo.
O passado é como argila que
nos molda e a que estamos presos, embora chamados imperiosamente pelo futuro. Não
escapamos do tempo, não escapamos da nossa história. Somos pressionados pela realidade e pelos desejos.
Como pode o ser humano ser
livre se ele está inexoravelmente premido por seus anseios e
amarrado ao enredo de sua vida? Para muitos filósofos, é
nesse conflito que está o problema da nossa liberdade.
Alguns tentam resolver esse
dilema afirmando que a liberdade é a nossa capacidade de
escolher, a que chamam livre-arbítrio. Liberdade se traduziria por ponderar e eleger entre
o que quero e o que não quero
ou entre o bem e o mal, por
exemplo. Liberdade seria, portanto, sinônimo de decisão.
Prefiro a interpretação de
outros pensadores que nos dizem que somos livres quando
agimos. E agir é iniciar uma nova cadeia de acontecimentos,
por mais atrelados que estejamos a uma ordem anterior.
Liberdade é, então, começar
o improvável e o impensável. É
sobrepujar hábitos, crenças,
determinações, medos, preconceitos. Ser livre é tomar a
iniciativa de principiar novas
possibilidades. Desamarrar.
Abrir novos tempos.
Nossa história e nosso passado não são nem cargas indesejadas, nem determinações. Sem
eles, não teríamos de onde sair,
nem para onde nos projetar.
São heranças e pontos de orientação. Sem passado e sem história, quem seríamos?
Mas não é porque não pudemos (fazer, falar, mudar, enfrentar...) que jamais poderemos. Nossa capacidade de dar
um novo início para as mesmas
coisas e situações é nosso poder
original e está na raiz da nossa
condição humana. É ela que dá
à vida uma direção e um destino. Somos livres quando, ao
agir, recomeçamos.
Somos livres sem querer.
Mesmo inconscientes e involuntários, nossos gestos e palavras sempre destinam nossas
vidas para algum lugar.
A função dos propósitos é
transformar esse agir, que cria
destinos, numa ação consciente e voluntária. Sua tarefa é a
de romper com a casualidade
aparente da vida e apagar a impressão de que uma mão dirige
nossa existência.
Os propósitos nos devolvem
a autoria da vida. Garantem
nossa liberdade, mas, paradoxalmente, não podem garantir
a sua própria realização. Coisas da liberdade, que pode nos
destinar a novos propósitos.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia - Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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