São Paulo, terça-feira, 24 de maio de 2011
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NEURO

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - suzanahh@gmail.com

Repleta de memórias enquanto dure


Nossa vida é a soma dos eventos passados e do registro que deles fica no cérebro, acessível à recordação

Comprei um caderno artesanal lindo, enorme, em Sydney, contando usá-lo para fazer um álbum de fotos com anotações.
Logo depois, contudo, fui apresentada ao iPhoto, que resolveu meu desejo de organizar e comentar fotos impressas. Que fazer então com meu belo caderno?
Resolvi transformá-lo na minha versão de outro caderno que vira por lá, grosso, de papel-bíblia, chamado My Life: um registro ao longo da vida ""bom, da que me resta"" das minhas melhores memórias, das imagens mais impressionantes que vi, das músicas favoritas, dos pratos prediletos, de shows, concertos e eventos marcantes, atualizado permanentemente.
Soa quase infantil, eu sei. Além disso, não é para registrar memórias que serve o cérebro? Idealmente, sim. Mas nem todas as memórias permanecem; as que não são revisitadas com frequência aos poucos vão se perdendo, cedendo lugar a outras, talvez.
O registro externo é um "aide-mémoire", como dizem os franceses, uma ajudinha para, daqui a uns anos, eu lembrar melhor e com mais detalhes dos eventos que me levaram até ali.
Nós somos, afinal, o somatório não só desses eventos, mas também do registro que deles fica no cérebro, acessível à recordação consciente.
Daí vem a individualidade: da história de vida, agindo, claro, sobre a biologia do cérebro como ponto de partida e base ao longo do tempo.
Por isso a doença de Alzheimer é tão devastadora: ao apagar a memória autobiográfica, ela desfaz a história pessoal e, assim, dissolve o indivíduo.
A fase mais dura, para quem adoece, é aceitar o prognóstico do esvaziamento do seu álbum de fotos mais íntimo. Para quem testemunha o processo, contudo, o pior só vem mais tarde, quando é preciso aceitar que a pessoa que habitava aquele cérebro já não está mais ali e passar por um processo paradoxal de luto em vida.
Donde minha vontade de começar logo a registrar por escrito (em frases curtas, só para um dia lembrar dos assuntos, porque, afinal, tenho mais o que fazer!) e, talvez, com uma ou outra foto, aquelas memórias às quais hoje ainda tenho acesso fácil.
Assim, quando mais tarde me venham procurá-las quem sabe o tempo, angústia de quem vive, quem sabe o Alzheimer, fim de quem ainda é, eu possa me dizer da vida (que tive): que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja plena e repleta de memórias enquanto dure.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com


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