São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2008
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ANNA VERONICA MAUTNER

Onde foi parar o campinho?


[...] CABE À SOCIEDADE PROPICIAR ESPAÇO PARA A EXPERIÊNCIA DOS PAPÉIS SOCIAIS QUE DEVERÃO SER ASSUMIDOS POR ADULTOS

O velho campinho foi o espaço livre onde se brincava na cidade grande. O medo acabou com ele. Vivendo e nos defendendo de forças que nos empurram -de um lado para a vala comum da estandardização e de outro para a premência de sermos únicos e diferentes de todos-, ficamos sem tempo e espaço para brincar e curtir.
Para nossos filhos, púberes ou pré-adolescentes que vivem em grandes cidades sem espaço lúdico, o impacto dessas forças acaba invadindo o cotidiano.
Não dá para eles realizarem tranqüilamente as escolhas que essa dicotomia coloca. É no lúdico que são feitas as escolhas descompromissadas, que funcionam como exercício de autonomia. Criança brinca; adolescente e adulto curtem o que lhes é agradável. No lúdico, pomos à prova o nosso potencial.
Por meio de acertos e erros, aprendemos a refletir sobre nossa relação com o mundo e com nós mesmos. Nessa encruzilhada entre "eu e nós", é forjado nosso eu, que será tão mais claro quanto mais tivermos tido tempo de faz-de-conta.
Na falta de espaço para experiências emocionais, encontram-se as fontes dos sentimentos de vazio interior e da dificuldade de criar empatia. É aí que o pré-adolescente se sente mal-cuidado e tenta salvar sua integridade existencial forjando experiências que podem ir de violência a apatia.
A agressão pode se voltar contra o meio material (prédios, ruas, jardins) e também contra pessoas. Depredação, pixação e quebra-quebra podem ser vistas como o uso do meio como brinquedo. Essas ações são de grupos aos quais faltaram condições de estabelecerem um imaginário satisfatório.
A sociedade civil vem falhando no provimento do espaço urbano lúdico, onde meninos exercitem liderança, potência, dominação, submissão etc., de que vão precisar no futuro.
Onde estão os quintais, as escadas e os corredores onde as meninas brincavam de casinha, de escolinha e de salão de beleza? Não se impede que as meninas também joguem bola, futebol, amarelinha, queimada.
O espaço livre é necessário para encontrarmos liberdade de entrar e de sair, de participar e de abandonar, de excluir e de ser excluído, fatos inevitáveis na vida de todo cidadão livre.
Fala-se mais em tornar a aprendizagem formal agradável do que em fornecer espaços lúdicos e prazerosos. O jovem que é impedido de fazer parte de várias galeras deixa de se exercitar para a vida adulta.
Sem pretender que isso seja tomado como receita, cito clubes, acampamentos de férias, parques, praias, bandas de música, grupos de teatro, a rua e a praça. Cabe à sociedade propiciar espaço para a livre experiência dos variados papéis sociais que deverão ser assumidos por adultos.
Os espaços livres fazem falta.
Neles se podia brincar longe de casa, sem supervisor. Mas isso era num tempo em que havia espaço e segurança. Vamos tentar reinventá-los?


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br



Rosely Sayão volta a escrever em 31/7


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