São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2001
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outras idéias

A mídia como corpo docente



MARIO SERGIO CORTELLA

Erotização precoce, consumismo desvairado, competição e não-cooperação, individualismo etc. podem estar sendo "ensinados" sem que os envolvidos na mídia se dêem conta disso

As sociedades ocidentais contemporâneas transferiram, pouco a pouco, os cuidados com as crianças das famílias para as escolas. A formação e a informação cognitivas, morais, sexuais, religiosas, cívicas etc. passaram a ser entendidas como uma tarefa essencial do espaço escolar, em substituição a uma convivência familiar cada vez mais restrita em qualidade e quantidade.
Por isso, quando nos aproximamos do início do ano letivo, não são só as aulas que estão chegando; na prática, é a entrada ou a reentrada das nossas crianças e dos nossos adolescentes no território que se supõe seja o mais adequado para eles estarem ("em vez de ficarem nas ruas ou shoppings"). Há, assim, uma crescente sacralização do espaço escolar como um lugar de proteção/formação/salvação e, por consequência, uma maior responsabilização dos educadores na guarida das gerações vindouras. No entanto essa responsabilização beira a culpabilidade, como se a escola e os profissionais nela presentes tivessem, isoladamente, o exclusivo dever de dar conta de toda a complexidade presente na educação da juventude.
É preciso, porém, observar um fenômeno que explodiu nos últimos 20 anos: uma criança dos centros urbanos, a partir dos 2 anos de idade, assiste à televisão, em média, durante 3 horas diárias, o que resulta em mais de 1.000 horas como espectadora durante um ano (sem contar as outras mídias eletrônicas, como rádio, cinema e computador). Ao chegar aos 7 anos, idade escolar obrigatória, ela já assistiu a programação televisiva por mais de 5.000 horas. Vamos enfatizar: uma criança, no dia em que entrar no ensino fundamental, pisará na escola já tendo sido espectadora de mais de 5.000 horas de televisão!
Quando pensamos no campo da formação ética e da cidadania, os problemas na educação brasileira não são, evidentemente, um ônus a recair prioritariamente sobre o corpo docente escolar; há um outro corpo docente não-escolar com uma estupenda e eficaz ascendência sobre as crianças e os jovens.
Cinco mil horas! Imagine a responsabilidade daqueles e daquelas que produzem as programações e as publicidades! Pense no impacto formativo sobre os valores, hábitos, normas, regras e saberes que os profissionais dessa área de mídia têm sobre os infantes e sobre a chamada primeira infância, época na qual uma parte do caráter permanente da pessoa se estrutura!
É claro que isso obriga também os que lidam com educação escolar a reverem os objetivos e a metodologia de trabalho; afinal, crianças pequenas não chegam mais à escola sem nenhuma base de conhecimento e informação científica e social, dado que têm outras fontes de cultura no cotidiano. Entretanto essa constatação não desobriga a mídia a pensar e a repensar o seu papel social: valores discricionários, erotização precoce, consumismo desvairado, competição e não-cooperação, individualismo etc. podem estar sendo "ensinados" sem que os envolvidos na mídia se dêem conta disso.
Vale, por isso, lembrar o que, em 1980, nos contou Adélia Prado em "Cacos para um Vitral" (com seu estilo simuladamente ingênuo e deveras percuciente), descrevendo uma cena familiar noturna em uma sala em pequenina cidade das Minas Gerais, quando fictícios personagens de novela borrifavam seus efeitos concretos na vida real: "Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde pediu: Mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim...".

MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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