São Paulo, terça-feira, 25 de maio de 2010
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OUTRAS IDEIAS

MICHAEL KEPP - mkepp@terra.com.br


Um hipocondríaco como eu vê uma dor de garganta como uma fase entre uma tosse e uma pneumonia


DEMONSTRO TANTO meus medos que minha mulher, Rosa, me chama de dramático. Mas "alarmista" descreve melhor falsos profetas, como eu, que predizem que algo ruim vai ocorrer.
Um alarmista precisa de pelo menos uma fobia. Uma das minhas é a hipocondria. Para mim, dor de garganta é uma fase entre a tosse e a pneumonia.
Quando vim para o Rio, trouxe comprimidos para esterilizar água, um kit contra mordida de cobra e dois tipos de pílulas contra malária, que tomei até constatar que não havia o mosquito transmissor na cidade.
Também tenho medo de dentista. Antes de ir, tomo dois ansiolíticos, mas continuo apavorado. Já que tenho todos os dentes e nunca fiquei doente, Rosa insiste que eu modere meu medo de males imaginários.
Recentemente, me chamou de dramático por causa do meu primeiro tratamento de canal. Nele, expressei medos como o de que, mesmo anestesiado, uma dor aguda geraria um espasmo, levando a broca a dilacerar minha gengiva. Mas nada ruim aconteceu.
Horas depois, fomos a um coquetel. Como não conhecia quase ninguém, me diverti dizendo aos garçons que, como havia sido operado e estava em dieta líquida, enchessem meu copo de champanhe.
"Operado?", Rosa perguntou, sem querer resposta. Com o aumento do teor alcoólico, aumentaram também os exageros. Rosa acabou com a preocupação dos garçons, revelando a microcirurgia. Eles gargalharam e ela também.
Meu lado alarmista, que Rosa acha chato, e meus exageros lúdicos, que acha cômicos, são parte da minha natureza dramática. Mas até meu alarmismo, se absurdo o bastante, a diverte.
Uma noite, uma aranha enorme subiu na cama em nossa pousada na Grécia. Depois de matá-la, ela achou minha figura -nu, de cócoras e tremendo em cima da poltrona- patética. Então, riu.
Um tema central nos filmes de Woody Allen, outro alarmista, é que as pessoas não podem rejeitar o complexo pacote que somos sem perder muito do que, em nós, as cativa.
A expressão inglesa para isso é "jogar o bebê fora com a água da banheira", disse à Rosa. Ela aceitou o argumento, especialmente a parte que me compara ao bebê.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e desabafos de um gringo brasileiro", (ed. Record).

www.michaelkepp.com.br

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