São Paulo, quinta-feira, 25 de setembro de 2008
Próximo Texto | Índice

OUTRAS IDÉIAS

Anna Veronica Mautner

Sobre comemorações


[...] QUANDO ESPERAMOS ALGO MELHOR, DESEJAMOS ENCURTAR O TEMPO PARA QUE CHEGUE LOGO; ENQUANTO ESPERAMOS O MAL OU O PIOR, FAZEMOS TUDO PARA EVITÁ-LOS

Preparava-me para refletir sobre a Lei Seca quando me perdi em outras divagações.
Veio-me à mente que, afinal, fermentados, destilados e outras substâncias do gênero criam estados alterados de consciência, condição para que festas sejam animadas e deixem saudades. E também para que dores sejam aliviadas.
É bem difícil imaginar que cidades e países entrem em alegria ao mesmo tempo, no Natal ou no Carnaval, por exemplo, sem um empurrão. Essas datas são para esperar e lembrar. Esperando-as, vamos nos preparando para tudo o que não é cotidiano. Quando esperamos algo melhor, nada mais fazemos do que desejar encurtar o tempo para que chegue logo. Enquanto esperamos o mal ou o pior, fazemos tudo para evitá-los.
Temos o poder de transformar o cotidiano em festa eterna e afastar o mal a qualquer preço? Temos, mas depende de alterar o estado de consciência com tóxico -modernamente isso é chamado de viagem.
Que eu saiba, povo ou grupo nenhum sobrevive fazendo festa todo dia. O mito do paraíso perdido nos tornou eternos esperançosos de voltar para lá.
Por enquanto, isso não deu certo. E, se desse, seria banalizar o que desejamos. Além do mais, esses sonhos não combinam com o funcionamento da nossa mente: parece-me que ela se organiza melhor diante de um objetivo ou de perigo. Se a farra é necessária -e o é-, a ordem e a rotina não são menos importantes para a manutenção de nosso equilíbrio interior.
Tranqüilidade para plantar, apascentar os bichos e evitar predadores sempre foi necessária, assim como buscar água e criar descendência. Tudo isso é rotina. Mas, da mesma forma que alimentar o corpo, é necessário liberá-lo para o prazer, para o diferente. É por isso que as culturas instituem festas.
Esses dias podem ser arbitrários, como o descanso semanal, e podem coincidir com o fim da colheita, com o tempo das chuvas ou com eventos cosmogônicos quaisquer. Em geral, para que a liberação ocorra, os rituais são acompanhados de certos aditivos, drogas mais ou menos potentes. Parece que não se descobriu outro jeito de gerar alegria na hora certa. Bebendo, cheirando ou fumando, garantimos euforia para todos ao mesmo tempo. Aliás, esse é o grande barato, que vale também para o contato com o sagrado em cerimônias religiosas.
O ritual da quebra da rotina, para que se torne uma celebração aguardada, também pede um estado alterado de consciência.
Mas, se o ideal da alegria controlada puder acontecer todos os dias, torna-se facilmente vício e dependência. Um drogado não espera, droga-se quando quer. Se conseguíssemos realizar o ideal da festa permanente, perderíamos tudo o que há de bom nas festas: seria o fim da saudade e da espera pela nova epifania.
Se o álcool é um alterador de estado de consciência, promovendo desinibição necessária a celebrações, e o carro é uma terrível arma com sua potência e tamanho, será que é sensata a união de ambos?


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


Próximo Texto: Pergunte aqui
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.