São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 2005
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Comportamento

Na contracorrente da fast food, jovens redescobrem o prazer de cozinhar em casa

Cozinha na moda

MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Com as incontáveis opções de lugares para comer fora de casa e de serviços de entrega em domicílio -sem mencionar a propagação dos alimentos pré-cozidos e congelados-, estará o velho fogão doméstico fadado a virar peça de museu? Diariamente, cerca de 45 milhões de brasileiros se alimentam fora de casa -número que tende a aumentar, segundo dados divulgados pela Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) neste ano. Em 2004, o segmento de "food service" (alimentação fora do lar) cresceu 15,5% contra 9,7% do varejo.
De acordo com a associação, daqui a 15 anos, o percentual de gastos com a alimentação fora de casa corresponderá a 40% de toda a despesa com comida.
Enquanto esses números avançam, uma contracorrente de homens e mulheres junta esforços pela sobrevivência do fogão. São jovens que cresceram com a cultura da fast food, mas que estão redescobrindo o prazer de cozinhar e, principalmente, de dividir a comida com os amigos e a família, em aulas, grupos de encontro e confrarias.


O trabalho à beira do fogão pode ter efeito terapêutico. No século passado, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) já dizia: "Não pense, cozinhe!"


Além de ser garantia de uma comida quase sempre mais saudável, cozinhar em casa é visto como uma forma de "terapia", contribuindo para o bem-estar físico e mental. Mas a conversa ao pé do fogão é o principal tempero desse retorno às panelas nas grandes cidades.
A professora Luana Chnaiderman de Almeida, 29, e o historiador Luís Filipe Sivério Lima, 29, reformaram recentemente o apartamento onde vivem, em São Paulo, com o objetivo principal de unir a sala à cozinha -que também foi equipada com um fogão industrial.
Pelo menos uma vez por semana, o casal recebe amigos para jantar, e a cozinha, a área preferida dos donos e das visitas, estava ficando pequena demais.
"A cozinha é o coração da casa", afirma Luana. Ela acredita que cozinhar serve como pretexto para reunir os amigos e conversar. "Parece que cozinhar para si mesmo não tem sentido. Sempre que fazemos uma comida boa, ficamos pensando em quem vamos chamar para comer", diz.
Outra vantagem de cozinhar em casa, para ela, é a hora de pagar a conta: "Comer bem em São Paulo sai muito caro e nem sempre se come realmente bem. Além disso, nunca ficaria cinco horas conversando num restaurante", diz a professora.
Luana aprendeu a cozinhar com os pais e, quando casou, desenvolveu ainda mais suas habilidades culinárias ao lado do marido, que não tira os olhos do fogão -e dos livros. "Filipe é maníaco por bibliografia", brinca Luana. Se ele resolve fazer um prato novo, procura a receita em pelo menos três livros diferentes para poder fazer comparações.
"Primeiro, temos que jantar a bibliografia", diz Filipe, que defende a idéia de que as mulheres na cozinha são "mais práticas e desencanadas", enquanto os homens são "metódicos e perfeccionistas". "É cultural. Os homens cozinham menos e em ocasiões especiais. E as mulheres, muitas vezes, cozinham por obrigação", afirma ele.
Quando os livros são insuficientes, o historiador recorre à internet. Foi onde ele encontrou as receitas para um jantar temático irlandês, feito em comemoração do aniversário de um amigo aficionado pela cultura celta. "Preparamos alguns pratos regados a Guinness [cerveja escura típica da Irlanda], e um amigo levou uma gaita de fole. Depois do jantar, ficamos ouvindo músicas e histórias celtas", diz a professora.

ABACATE COM PIMENTA
O rumo da prosa faz lembrar que as palavras saber e sabor são derivadas do mesmo radical latino: "sapere" (ter gosto). "A relação da pessoa que cozinha com o mundo é muito diferente. Há uma abertura maior para outras sugestões não só de receitas mas de livros e músicas. O abacate pode ser doce ou salgado e com pimenta. Tem gente que não admite isso", afirma o professor de inglês André Ferreira Siqueira, 25, que há quatro anos se apaixonou pela arte de cozinhar por influência do irmão, que já trabalhou com um chef francês.
"Antes eu só sabia fazer aquele macarrão básico, que aprendi com a minha mãe por curiosidade, mas logo veio a necessidade de usar meus conhecimentos na cozinha", diz. Sempre que viajava com os amigos, ele acabava pilotando o fogão. Aos poucos, André começou a sofisticar o menu, lendo livros relacionados ao tema e, principalmente, pedindo dicas para o irmão.
Segundo o professor, cozinhar é um exercício de humildade: "Vejo que a minha referência não é tudo. O mundo não é só aquilo que eu enxergo. O meu mundo, inclusive, é muito pequeno", diz.
Num sábado à tarde, ele passa horas assando bolos e cookies para organizar um chá -sua outra grande paixão- entre amigos. Para ter bons momentos à beira do fogão, entretanto, tempo e calma são ingredientes indispensáveis. "Não adianta cozinhar estressado e preocupado com o horário nem comer correndo. Aí é um trabalho como outro qualquer", diz.
Ele se recorda de quando cortou o próprio dedo ao preparar uma carne, apressadamente, para fazer uma feijoada. A dica de André é relaxar antes de começar a cozinhar: ouvir música, beber um bom vinho, tirar os alimentos da geladeira com calma.
A escritora Sonia Hirsch, 58, vai além. Para ela, cozinhar pode ser meditação. "É uma prática que leva tempo e exige paciência e entrega. Se a pessoa não põe a mente no que está fazendo, pode queimar a comida, salgar demais, errar a receita e cometer toda sorte de erros e distrações", afirma ela, autora do livro de crônicas "Meditando na Cozinha" (ed. Corre Cotia, 2002) e de mais de dez títulos -quase todos sobre alimentação.

COZINHAR COMO MEDITAÇÃO
O livro deu origem a uma oficina (ministrada por Hirsch anualmente) que tem como base conceitos da cultura oriental e procura indicar caminhos para uma atitude mais reflexiva diante da preparação dos alimentos.
"A idéia é valorizar o estado de espírito e a harmonia na hora de cozinhar. Tem a ver com a escolha dos alimentos, o tipo de corte escolhido, a organização do tempo, a maneira como a pessoa se comporta na cozinha", diz Hirsch. Segundo ela, cozinhar pode ser uma prática muito rica em significados e insights se o cozinheiro estiver atento e entregue ao que está fazendo. "O contraste entre o magenta e o branco, que aparece ao cortar um simples rabanete, pode se transformar num show ", diz.
A escritora também enxerga o ato de cozinhar como um exercício de generosidade e de autoconhecimento, além de proporcionar um contato com a natureza. "Quem vive numa cidade grande precisa de mais contato com os elementos da natureza. Lavar os alimentos, molhar as mãos e lidar com o fogo trazem harmonia", diz.
Essa aproximação com a natureza é a primeira reflexão que vem à cabeça da redatora de design de embalagens Tatiana Damberg, 25, quando ela tenta definir por que gosta tanto de cozinhar.
"Acho muito legal comprar os ingredientes na feira. Se vejo que a alface está murcha, sei que choveu na horta. Mesmo morando num centro urbano, consigo ter um contato com o campo", diz ela, que também vê na preparação dos alimentos uma maneira de aguçar os sentidos e melhorar a atenção.
Sua grande diversão, no entanto, é reunir os amigos ao redor do fogão para testar uma receita nova. "Ponho todo mundo para trabalhar, picar cebola. A pessoa vê que o que ela fez também ficou bom. É muito mais legal do que só comer", diz.


Segundo o matemático francês Gérard Olivier, "o jeito passivo e sistemático de cozinhar com microondas ou de pedir comida em casa causa um impacto negativo em muitos países"


Com ajuda da mãe, Tatiana traduziu trechos de um antigo livro de receitas da avó, imigrante da Letônia. "Hoje já domino algumas receitas típicas, como os biscoitos de pimentas. No Natal, chego a fazer 12 quilos de biscoito para dar de presente", diz.
Outro que arregaça as mangas em datas comemorativas é o administrador de empresas José Augusto Garcia Santos, 24. "No Natal passado, fiz minha primeira ceia. No último Dia das Mães, fiquei o sábado inteiro preparando a massa de um ravióli de mussarela de búfala para o almoço de domingo, para 30 pessoas", diz José Augusto, que cozinha desde os 12 anos. Ele começou com os lanches, mas preferia usar queijo brie, tomate seco e pão ciabatta no lugar do básico sanduíche de mortadela. Depois ganhou do pai um livro de receitas e acabou até fazendo um curso de culinária, no qual aprendeu, por exemplo, a tirar as sementes e cascas do tomate para fazer o molho do macarrão.
A troca de receitas com pessoas mais velhas também abre caminho para outras amizades e gerações. "Para fazer amizade, às vezes faço um prato e levo para o vizinho. Fiz amizade com pessoas com quem, normalmente, eu não teria um interesse comum, com mulheres de 50, 60 anos", diz José Augusto, que faz questão de passar por todas as fases da preparação, desde a compra dos ingredientes até a decoração da mesa.
"A grande satisfação é fazer algo que gosto, mas é bom saber que as pessoas apreciam alguma coisa que eu faço. Faz bem para o ego", diz ele, que se refere à cozinha como um grande divã. "É uma terapia. Quando entro na cozinha, esqueço o mundo e os meus problemas. Aquilo de alguma forma me relaxa."

SOPA DE LETRINHAS
A idéia do administrador já moveu outras colheres. No século passado, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) dizia: "Não pense, cozinhe!". Em 1975, o médico nova-iorquino Louis Parrish passava a receita: "Se você consegue organizar sua cozinha, consegue organizar sua vida", no livro "Cooking as Therapy: How to Keep Your Souffle Up and Your Depression Quotient Down" (algo como: cozinhando como terapia, como manter seu suflê alto e o seu nível de depressão baixo).
Para a professora de terapia ocupacional Elisabete Mangia, da Faculdade de Medicina da USP, nenhuma prática é "em si terapêutica". "O que determina é o contexto. Cozinhar também pode ser estressante", afirma.
De acordo com a professora, é preciso atribuir ao ato de cozinhar um valor simbólico, ritualizar. "É importante reapropriar essas formas de sociabilidade que estão sendo perdidas neste contexto de individualização das relações, em que os encontros são virtuais", diz.
Em uma comunidade na internet sobre culinária e gastronomia, o matemático francês Gérard Olivier iniciou uma discussão defendendo que aprender a cozinhar pode ser um caminho para mudanças sociais e pessoais. Segundo ele, compartilhar técnicas e receitas de cozinha estimula a criatividade, fortalece os relacionamentos e serve como ponte entre gerações e culturas diferentes.
Olivier acredita que "o jeito passivo e sistemático de cozinhar com microondas ou de pedir comida em casa causa um impacto negativo em muitos países". "Alguns programas de reabilitação para famílias usam o preparo de refeições comunitárias para fortalecer as relações", diz o matemático. Por outro lado, Olivier afirma que as escolas de culinária ainda têm uma imagem esnobe por conta de algumas "caricaturas de chef" que compram mil utensílios e adoram citar ingredientes com nomes complicados.


Compartilhar receitas de cozinha estimula a criatividade, fortalece as relações e serve como ponte entre gerações e culturas diferentes


A advogada e professora de culinária Heloísa Bacellar, 42, dona da escola de culinária Atelier Gourmand, em São Paulo, afirma que muita gente chega para aprender com medo de errar. "É preciso desmitificar que cozinhar é difícil e trabalhoso. É só ter princípios básicos de organização", afirma.
Segundo ela, a escola foi concebida para atender a um público amador que quer aprender a fazer alguma coisa para o dia-a-dia. "As aulas são interativas, cada aluno tem sua própria bancada e seu próprio fogão", diz. Muitos dos jovens que procuram o curso foram criados por mães que não cozinhavam e não tiveram com quem aprender.
A designer de interiores Cristiane Belodi, 27, nunca se interessou pelo fogão. Com a data de casamento marcada para setembro, no entanto, resolveu fazer o curso de culinária.
"Precisava aprender o básico, como fritar cebola", diz. Depois de algumas aulas, já ostenta um cardápio com quiches, massas e carnes, entre outros pratos.
"Sempre tive quem fizesse por mim. Não gostava porque eu não sabia, achava que era muito difícil. É claro que nas primeiras vezes dá um pouquinho errado", afirma ela, que assumiu o lugar da mãe na cozinha de casa e diminuiu o gasto com restaurantes.
"É extremamente prazeroso agradar a uma pessoa com um prato. Me sinto realizada, vejo que não dependo de ninguém", diz. Um dos primeiros a experimentar o novo dote da designer foi o noivo. O menu: filé mignon com molho de mostarda. Enquanto cozinhava, Cristiane não parava de pensar em um bom delivery para ligar se o filé virasse sola. "Ele adorou", pensou a noiva, aliviada, depois de vê-lo comer a primeira garfada. O casamento está de pé.


Texto Anterior: Doença do ocidente
Próximo Texto: Chefs por uma noite
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.