São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2008
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

INSPIRE RESPIRE TRANSPIRE

ultranobre

Conhecido por aventuras extremas como completar seis maratonas em seis dias, o ultramaratonista irlandês Peter Ferris recebeu título de nobreza do príncipe Charles

RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA

Com o calção semi-arriado, o sujeito limpava a bunda sem a menor cerimônia, logo depois de ter se aliviado atrás de uns arbustos, no acostamento da N59, rodovia que corta o oeste da Irlanda e palco, naquele momento, da ultramaratona de Connemara.
Provocou risinhos em duas atletas que passaram por ele e me fez pensar em como alguns ultramaratonistas podem ser tão descansados em relação a seus próprios corpos. Talvez porque submetam o organismo a provas extremas ou talvez porque aquele sujeito, em especial, estava pouco ligando para o que cada um pensasse.
Minutos mais tarde, ele emparelhou comigo. Conversamos rapidamente, o suficiente para saber que ele pretendia fechar em sete horas o percurso de mais de 63 quilômetros por vales e montanhas, no frio, na chuva e no granizo. E que, naquela manhã gelada de domingo, 6 de abril, estava participando de sua maratona de número 300.
Bem mais rápido do que eu, foi embora pelo asfalto. Quase 50 quilômetros depois, voltei a encontrá-lo, alquebrado, lerdo, sofrendo, mas decidido a terminar a provação.
Mais tarde fiquei sabendo a razão: ele ainda tinha os pés machucados, queimados pelo gelo do pólo Norte, onde, apenas cinco dias antes, havia corrido uma maratona sob temperatura de 29 graus Celsius negativos. No dia anterior, aliás, tinha corrido a maratona de Connemara, fazendo parte do circuito que agora enfrentava na totalidade de seus 63,3 quilômetros.
Tratava-se de Peter Ferris, que, no circuito europeu de ultramaratonas, é conhecido como "aquele corredor irlandês maluco". De fato, suas aventuras extremas "acaba de completar seis maratonas em seis dias seguidos nos seis territórios da Irlanda" parecem coisa de doido.
Mas ele também é nobre: recebeu das mãos do príncipe Charles o título de MBE (em inglês, Membro do Império Britânico) por sua atuação em benefício de obras de caridade. E é um sujeito comum, casado, 52 anos, pai de um adolescente, funcionário da Universidade de Ulster há 18 anos, técnico em computação.
Leia a seguir entrevista com Ferris, que começou lá mesmo, pouco depois de termos terminado a ultramaratona (saiba mais em www.folha.com.br/rodolfolucena), e continuou por e-mail.

 

Folha - Então você é nobre?
Peter Ferris -
Sou MBE (Membro do Império Britânico), um título como "sir", que ganhei porque arrecadei muito dinheiro para obras de caridade com minhas maratonas. Recebi o título do príncipe Charles, no palácio de Buckingham, em Londres, em 2000. Foi o melhor dia de minha vida, melhor do que qualquer maratona. Ele foi muito legal e muito simples. Em geral, a imprensa é dura com ele e, sim, ele fala com as plantas... Ele me disse para continuar correndo, que é o que estou fazendo.

Folha - Como você arrecada dinheiro e para quem?
Ferris -
Eu arrecadopara várias entidades beneficentes. Essa corrida que eu acabei de fazer, de seis maratonas em seis dias (www.run 666.org), foi em benefício da Alzheimer’s Society e do Macmillan Cancer Support. Em geral, as arrecadações são para entidades que ajudam pessoas com câncer. Meu pai e minha mãe morreram de câncer, boa parte de minha família teve câncer. Então pensei: por que não correr e arrecadar fundos para ajudar quem sofre dessa doença?

Folha - Quando você começou a correr?
Ferris -
No fim dos anos 1970, quando a Irlanda do Norte estava em guerra com a Grã- Bretanha. Cheguei a levar tiros quando corria ou andava de bicicleta, mas nunca fui atingido. Minha primeira maratona foi em Belfast, em 1982. Meu recorde é 2h47min. Já fiz mais de 300 maratonas, incluindo 43 ultras e uma prova de 1.000 km. Essa corrida foi em 1995, na Irlanda. Levou 15 dias, eu corri em média 70 km por dia, sob temperaturas de até 33o C.

Folha - Por que você corre maratonas?
Ferris -
Eu adoro a distância. Quanto maior, melhor. Na Irlanda, sou conhecido como Forrest Gump. Eu vivo para isso. É um exercício saudável, e eu pretendo continuar correndo maratonas até chegar à velhice. Tenho o recorde irlandês para o maior número de maratonas e ultras.
Também participo de diversos clubes de corrida, o que me possibilita uma vida social movimentada. Aqui na Europa, muita gente já me conhece, o "louco corredor irlandês".

Folha - E o que você me diz das ultras?
Ferris -
Eu adoro. Já corri várias vezes uma maratona num dia e uma ultra de 100 km no dia seguinte. Minha mais longa ultra foi de 1.000 km.

Folha - Por que corre tantas provas seguidas? Os médicos dizem que faz mal para a saúde...
Ferris -
Para mim, não são muitas. Eu acho que posso chegar a correr mais de 500 maratonas. Os médicos não sabem como funciona um corredor sério. Eles dizem que você não deve correr mais de três maratonas por ano. Bem, eu posso correr três maratonas em três dias. É como você entende o mundo das corridas. Eu sou positivo e digo: tudo é possível. É bom para minha saúde. A densidade de meus ossos é boa, assim como todo o meu corpo está em ordem. Eu me sinto como uma BMW novinha, ainda amaciando. É muito bom para o espírito. Quando eu morrer, espero continuar correndo em alguma outra vida, em algum lugar.


Texto Anterior: Na prateleira: Petisco ganha versão ao forno
Próximo Texto: Peter Ferris
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.