São Paulo, quinta-feira, 26 de outubro de 2000
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outras idéias
Conforme as ondas e os fios elétricos envolvem o planeta, levando para a tela tudo o que nos ameaça e o que nos encanta, enfrentamos o mundo agora domesticado
TV como mantra e oração

anna veronica mautner

Todo mundo (ou será quase todo mundo?) precisa de momentos em que pode, sem medo, ficar "desavisado", como se mergulhasse num "enlevo". Escolhi essas expressões para denominar um certo estado de ânimo. Se não ficamos "desavisados", longe das tensões que os perigos do mundo suscitam, não relaxamos e muito menos dormimos sossegados.
O mundo é mesmo muito perigoso. O que os nossos cinco sentidos contam -isso aliado às nossas experiências de vida e mais tudo o que temos na memória- exige "prontidão" -em legítima defesa!
Certas formas de isolamento constituem recursos eficientes para certos perigos. Manter boa saúde protege de outros tantos. Como estamos à mercê de tudo de ruim que o universo contém, desde o microscópico vírus até perigos sociais, corpos celestes, guerras etc., toda defesa é pouca. A consciência de que nossa vida depende de distância disso tudo exige "prontidão" -e isso cansa.
Para podermos reaver nossa inteireza, integração e estabilidade, precisamos de trégua. Os momentos de "desaviso" ou de "enlevo" constituem essa trégua, durante os quais ficamos um pouco como "tolos", confiantes, entregues a uma ilusão de segurança.
Os perigos continuam presentes, nós é que não os sentimos ao nos esquivarmos deles. Ficamos desavisados, enlevados, em alfa, "zen-burristas". Passamos obrigatoriamente por isso para podermos adormecer ou relaxar. Não há só um caminho para induzir esse estado. Podemos meditar, orar, ler (não estudar), contar carneirinhos ou seguir qualquer outro ritual. Esses hábitos asseguram-nos que, se ontem dormimos a salvo dos perigos, basta repeti-los para que amanhã acordemos tão vivos quanto hoje.
Modernamente, esse processo ganhou um novo recurso que funciona para muita gente. Ligar a televisão e recorrer ao zap salvador.
Aí vai uma nova função para a televisão. Conforme as ondas e os fios elétricos envolvem o planeta, levando para a tela tudo o que nos ameaça e também tudo o que nos encanta, enfrentamos face a face o mundo agora domesticado.
Na tela o bonito fica mais bonito, e o perigo se torna um verdadeiro leão desdentado. É uma maravilha! Guerra, violência, dor-de-cotovelo, doenças, tudo ali na nossa frente sem a menor possibilidade de nos atingir. E, se até a simples vista deles incomodar, zap. Não mais precisamos de mestres para chegar ao nirvana. Mesmo a oração ou o ritual noturno de cada um fica dispensável.
A televisão é o grande sucedâneo da interiorização. A monotonia das rezas, da repetição dos mantras, das cantigas e histórias infantis sempre tinha a missão de gerar um cordão de isolamento protetor. Ficou difícil competir com a TV, que nos põe esse poder na ponta dos dedos e ainda pode nos trazer o mundo rosa da ilusão. O "mal" e o "bem" ficam atrás da tela. Meditamos, oramos, lemos, vemos TV antes de dormir para desligar do mundo, de perigos de fato existentes e que sabemos que nos ameaçam. Na ilusão da segurança, adormecemos.
Só um senão para a televisão. O desavisado, feliz por ter o mal domesticado dentro da TV, mal percebe que mensagens indesejadas vão modelando o desejo que rege outras relações com o mundo. Exemplo: induzem ideologias e atitudes. Desavisados, recebemos mensagens com a crítica rebaixada.
Assim como a criança só dorme tranquila depois de um assegurador ritual que lhe garante acordar feliz, protegida dos monstros, nós também seguimos com outro discurso o mesmo caminho.
Não podendo viver sem medo, usufruímos as tréguas que tão bem sabemos usar.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Crônicas Científicas" (ed. Escuta), escreve aqui uma vez por mês



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