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São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003
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Vestibulandos desprezam critérios que são determinantes para fazer a escolha acertada, como história de vida e aptidões

Escolha da carreira é orientada pelo mercado

CIÇA GUEDES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O que a queda do Muro de Berlim tem a ver com o crescimento do índice de desistência nas universidades brasileiras? Pode parecer uma questão daquelas cabeludíssimas de vestibular, mas é fato. Desde que ruiu a separação entre as Alemanhas, em 1989, simbolizando o fim da Guerra Fria e o começo do processo de globalização e de mudanças profundas no mercado de trabalho, os vestibulandos passaram a usar uma espécie de critério neoliberal na hora da escolha do curso. A prioridade é para as carreiras que, acreditam, oferecem mais chances de sucesso nesta nova ordem econômica. Assim, aptidão, história de vida e desejos de realização ficam em segundo plano ou, simplesmente, são ignorados.
Não há dados oficiais nem estudos conclusivos, mas especialistas afirmam que os índices de desistência no ensino superior no país são recordes -entre 30% e 40%, incluídas as instituições particulares, em que o preço é mais um fator que pesa na desistência. E tais índices estão relacionados, entre outros, a escolhas feitas com base apenas na possibilidade de um futuro tipo comercial de carro importado, cujos valores que mais pesam são dinheiro, status e prestígio.
"Há 20 anos, os jovens queriam mudar o mundo, hoje querem ganhar dinheiro", diz a psicóloga Teresa Schiff, especializada em psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae e que trabalha com orientação vocacional desde 1986. Ela identificou essa tendência há cerca de dez anos entre os indecisos que atende e diz que ela se acentuou nos últimos cinco anos.
O pedagogo Silvio Bock, diretor do Nace Orientação Vocacional e Redação, diz que os jovens vivem angústias que outras gerações não viveram. "Até a década de 80, as novas gerações conseguiam ultrapassar ou, ao menos, igualar as condições em que seus pais viveram. De lá para cá, as pesquisas mostram que os filhos têm dificuldades até para reproduzir o padrão dos pais", diz Bock.
Para o pedagogo, o discurso neoliberal, que valoriza o individualismo, leva o jovem a pensar que competência, esperteza e habilidade são suficientes para garantir trabalho. "Não há outro discurso nos meios de comunicação se contrapondo a esse, e o lugar que deveria discutir a escolha profissional, que é a escola, faz pouco ou nada nesse sentido", afirma. Para ele, a boa escolha é a que leva em conta o maior número de influências -ou determinações, como prefere- sofridas pelo jovem.
A psicóloga Maria Célia Lassance, coordenadora do Serviço de Orientação Profissional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da Associação Brasileira de Orientadores Profissionais, afirma que escolhe bem quem consegue adequar seus desejos à realidade do mercado. "Na base da escolha devem estar estrutura familiar, normas, valores e aptidões. Mas também não se pode desconsiderar que a questão do mercado se impõe, vivemos tempos difíceis", diz a psicóloga.


"As empresas não querem profissionais que procuram apenas boa remuneração. Aptidão e gosto pelo que fazem são importantes porque geram compromisso com o trabalho"


Renata Mello, psicóloga e coordenadora da equipe de orientação profissional do Ciee -Centro de Integração Empresa-Escola

Durante a fase de inscrição para o vestibular da UFRGS, o Serviço de Orientação Profissional faz um plantão para orientar os candidatos. Entre os cerca de 50 mil inscritos para o concurso, pelo menos 2.000 estão atrás de informações que deveriam ter recebido muito antes. A desinformação abrange desde casos folclóricos, como o da garota moderninha que queria se inscrever em ciências atuariais porque acreditava que o curso versasse sobre temas da atualidade, até o estudante absolutamente consciente de sua escolha - psicologia organizacional, voltada para a atuação em empresas -, mas no lugar errado: o currículo da UFRGS é direcionado para a área clínica.
"Esses são dois exemplos emblemáticos dentre as razões que contribuem para a evasão", diz Lassance, que acrescenta a necessidade de trabalhar como terceira causa.
Com base na experiência de 29 anos como professora universitária, a filósofa Dulce Critelli, da PUC-SP, e coordenadora do Espaço Existentia, diz que os alunos que pensam a carreira só do ponto de vista do sucesso financeiro acabam se transformando em profissionais medíocres e têm dificuldade em conseguir colocação.
"Quem tem medo de desapontar os pais e opta pela carreira que eles escolheram deve pensar que a culpa de trair a si mesmo é muito pior", diz Critelli, apontando o autoconhecimento como primeiro passo. "A filosofia ensina que esse processo de auto-esclarecimento é terapêutico por si só." Ela lembra ainda que é necessário ter lucidez para compreender que, nos tempos atuais, uma pessoa vai ter muitas profissões ao longo da vida.
Para ajudar os indecisos, Teresa Schiff recomenda aos seus pacientes que escrevam uma autobiografia, com a ajuda de informações dos pais, avós ou tios. "O mais adequado é escolher a carreira de acordo com a história de vida, mas o difícil para o jovem é compreender o significado dessa história para o futuro. Por isso esse exercício é importante." Já Bock pede aos jovens que atende -cerca de 300 por ano- que montem um projeto para suas vidas.
Quem tem a visão do outro lado do balcão também concorda que os estudantes estão deixando-se seduzir, sem crítica, pela possibilidade de ascensão social via diploma universitário. E já até se convencionou chamar os cursos mais procurados de "cursos de mercado". Direito, administração e informática são alguns deles.
"Nós temos o perfil do profissional que as empresas buscam porque oferecemos estágio em todo o país. Elas não querem profissionais que procuram apenas boa remuneração. Aptidão e gosto pelo que fazem são importantes porque geram compromisso com o trabalho", diz a psicóloga Renata Mello, da equipe de orientação profissional do Ciee (Centro de Integração Empresa-Escola), que oferece orientação vocacional gratuita.
Para quem ainda não se conhece ou não reconhece suas aptidões e preferências, Mello propõe prestar atenção aos programas que mais atraem na TV, ao comportamento e às características de quem escolhe para amigo e ao que gosta de ler. "O cotidiano dá sinais, são informações que contribuem para identificar habilidades e gostos", diz ela.
À frente do Serviço de Orientação Profissional da USP desde 1981, Yvette Lehman diz ser comum o aluno se sentir desorientado na faculdade porque o ensino médio no Brasil é muito paternalista. "A universidade requer autogerenciamento, a liberdade muitas vezes traz confusão ao aluno novo. A Poli, por exemplo, criou a figura do tutor para ajudar o aluno a superar problemas típicos do início", diz a psicóloga. No terceiro ano, outro período crítico, a questão é o fim do ciclo básico, com suas disciplinas mais abrangentes, e o início do ciclo profissional.
Outra crítica, dessa vez à universidade, vem do professor Eulálio Figueira, da Faculdade de Filosofia da PUC-SP. "O jovem está mesmo focado em mercado, mas a universidade também está parada numa visão de décadas, até de séculos passados. O aluno fica anos esperando por um diploma, e, ao fim desse tempo, o mercado de trabalho já é outro", diz.
Vale lembrar que escolher a profissão não é sinônimo de escolher o curso universitário, e que a universidade não é o único caminho de acesso ao mercado de trabalho. "Universidade não é instrução, é algo para além disso. Falta coragem para dizer que nem todo mundo precisa estar lá", diz Figueira. A psicóloga Maria Célia Lassance diz que é comum a UFRGS encaminhar pessoas para os cursos oferecidos pelo Sesc, pelo Senai e por outras instituições. "Nem todas as escolhas exigem o curso universitário, é o mito da ascensão social. Há outras formas de aquisição de habilidades", diz.


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