São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002
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outras idéias

mario sergio cortella

Humana armadilha


Múltiplas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a "chave da felicidade" e, claro, o seu provável modelo. Alguns o situam na arte desprendida; outros, na religião obsessiva...


Há uma hilariante e inesquecível tirinha entre as milhares desenhadas pelo argentino Joaquin Salvador Lavado, o Quino, na qual, usando da aguda embora atordoada inteligência de Mafalda (sua mais conhecida personagem, inventada em 1963), ele consegue expressar com clareza alguns dos meandros que envolvem a existência humana. No primeiro quadrinho dessa tira, Mafalda se aproxima de uma loja de esquina onde há um idoso chaveiro; no quadrinho seguinte, entra no prédio e, cinicamente, diz a ele: "Bom dia. Quero uma chave da felicidade". Sem demonstrar espanto, no terceiro quadrinho, ele dirige um olhar complacente e lhe responde: "Com certeza, menina. Traz o modelo?". Sai ela então da loja, caminhando sem graça e pensando: "Espertalhão o velhinho!".
O modelo, onde está o modelo? Ou, melhor ainda, existiria um modelo? É preciso haver um? Múltiplas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a "chave da felicidade" e, claro, o seu provável modelo. Alguns o situam na arte desprendida; outros, na religião obsessiva; muitos, no consumo desvairado; vários, na política indolente; poucos, na filosofia militante; inúmeros, no trabalho insano; raros, na dignidade coletiva.
O que seria esse almejado horizonte a que uma chave desconhecida, distante ou simplesmente invisível poderia proporcionar o acesso? Felicidade pode ser estado de espírito, e não uma situação material; pode ainda despontar como um sentimento passageiro ou um devaneio fugaz. Marcando-se em nossa existência sempre como uma ocorrência episódica, remete-se, talvez, ao terreno ocupado por uma sabedoria misteriosa contida na frase do escritor e polemista francês Barbey D'Aurevilly, que, no século 19, era, curiosamente, um difusor e admirador do satanismo, ao dizer que "o prazer é a felicidade dos loucos; a felicidade é o prazer dos sábios".
Qual seria, então, a carga de verdade contida na advertência feita pelo muçulmano Saadi, escritor lírico cujas obras foram as primeiras poesias persas a serem traduzidas para o Ocidente moderno? Em meados do século 13, após ter sido libertado das mãos dos cruzados e ter-se enclausurado voluntariamente em uma espécie de convento, escreveu (em pleno deserto!) a coletânea "O Jardim das Rosas" e nela registrou (indicando uma das chaves possíveis): "Lamente por aquele que julga haver achado a felicidade, inveje aquele que a procura e a abandonará tão logo a encontre. A única felicidade consiste em esperar a felicidade".
Por isso a idéia de chave lembra uma reflexão de Gilberto Amado, diplomata brasileiro eleito membro imortal da Academia Brasileira de Letras no mesmo ano em que nascia Mafalda. Em meio à extensa obra memorialista e ensaística do escritor sergipano, destaca-se o livro inicial, "A Chave de Salomão" (1914), um elogio ao espírito contemplativo. Nesse ensaio, ele afirma que "felicidade é sinônimo de tranquilidade; ser feliz é ser tranquilo".
Ser feliz é ser tranquilo! Felicidade como estado de serenidade, como a capacidade de atravessar as perturbações cotidianas sem resvalar no desespero; felicidade como possibilidade de amainar a consciência e repousar a mente muitas vezes atormentada; felicidade como vivência plácida, mas distante do imobilismo e bem próxima da paz. Porém, nova complicação, o que é estar em paz?
Felicidade: sensação primordial ou meta inalcançável? Conquista paulatina ou ingenuidade pueril? Liberdade de busca ou armadilha romântica?
Se o soubéssemos, seríamos mais felizes?


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP, autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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