São Paulo, quinta-feira, 27 de agosto de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Wilson Jacob Filho

Azar ou falta de cuidado?


[...] A MAIORIA DAS ENFERMIDADES CURSA SEM SINTOMAS EVIDENTES POR ANOS, ATÉ QUE SE MANIFESTE

Meu amigo, tentando relatar um recente insucesso, disse ao telefone a conhecida frase: "Pão de pobre cai sempre com a manteiga virada para baixo".
Entendi sua consternação e preferi apenas ouvir suas lamentações, por entender que seria o melhor a fazer por ele naquele instante. Oportunamente, porém, será interessante contestar sua passividade, a fim de que ele possa refletir sobre outra visão dos infortúnios.
Qualquer pessoa que tenha consciência de suas limitações e queira realmente superá-las não pode correr o risco de perder suas escassas oportunidades. Em resumo, parafraseando o dito popular, "quem só tem um pão com manteiga cuida bem para não deixá-lo cair".
Se essa interpretação for vista como verdadeira para situações cotidianas, deverá ser ainda mais para questões de saúde.
Sempre que possível, quando ouço alguém muito limitado pelas nefastas consequências das doenças que se acumularam ao longo da vida, reclamando do "azar" de elas terem se somado "justamente nele", tenho o cuidado de explicar que as enfermidades crônicas ocorrem por múltiplos fatores associados e nunca por um isolado.
Os filhos de diabéticos não terão a doença, obrigatoriamente, se tiverem bons hábitos alimentares e de atividade física. O mesmo raciocínio se aplica para a osteoporose, hipertensão arterial, enfisema pulmonar e muitas doenças que, frequentemente, são atribuídas à hereditariedade ou ao acaso.
Até a doença de Alzheimer ocorre com menor frequência nas pessoas de maior escolaridade e/ou desempenho intelectual durante a vida. Por outro lado, é mais frequente entre os que apresentam doenças crônicas em maior número ou com pior controle.
Em síntese, existe uma relação de causa e efeito que se projeta no futuro, em que cada fator de risco ou de proteção terá consequências na saúde nas diferentes fases da vida, com efeito cumulativo.
Quando não tem doenças nem limitações, a maioria acredita que "comigo isso não vai acontecer". Grave engano, pois a maioria das enfermidades cursa sem sintomas evidentes por anos, até que se manifeste.
A melhor forma de combatê-las é a detecção precoce, quando não conseguiram determinar prejuízos irreversíveis.
Felizmente, cada vez mais pessoas estão se sensibilizando por fatos cientificamente comprovados e mudando seus hábitos de vida em prol de fatores que favoreçam sua saúde. Bons exemplos dessa realidade são os aparentes paradoxos que revelam a íntima relação entre o temer e o fazer: após superar uma evidência de doença grave, tendo a necessidade de submeter-se a exames complexos e/ou a períodos de internação hospitalar, cada vez mais pessoas estão se conscientizando de sua vulnerabilidade e assumindo maior responsabilidade sobre o futuro, dizendo "fiquei muito mais saudável depois que fiquei doente".
Em breve, quem sabe, poderemos dispensar essa necessidade do "susto" como agente promotor da saúde.


WILSON JACOB FILHO é professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP)

wiljac@usp.br

Leia na próxima semana a coluna de Michael Kepp


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